por Patrícia Atanes – CRP 06/37052
A televisão está cheia de policiais que violam as regras e de policiais cujos demônios pessoais tanto atrapalham quanto ajudam em seu trabalho. Mas você nunca viu uma policial tão bagunçada quanto Marcella Backland, a protagonista da série britânica “Marcella”.
A detetive Marcella, que decifra casos, sofre de violentos apagões. Em momentos de intenso estresse, ela entra em estado de amnésia, fazendo e dizendo coisas das quais mais tarde não se lembra. Durante a primeira temporada, vimos a personagem da sargento detetive Marcella Backland (Anna Friel) sofrer uma série de apagões violentos e perda de memória, o que a fez acreditar que ela havia cometido um assassinato quando não o fizera.
Nós a vemos pela primeira vez coberta de sangue e encolhida em uma banheira. Em seguida, a história salta para outro momento infeliz, quando ela descobre por telefone que seu marido a está deixando. A resposta dela é levar uma chave de roda até o carro dele. Essa é a nossa primeira noção de sua sequência violenta, mas haverá muito mais ao longo dos oito episódios da temporada. Um deles e, talvez o mais importante da temporada é o momento em que Marcella aparece sentada na banheira porque pode ter matado alguém durante um de seus apagões periódicos.
Marcella, interpretada com um olhar permanente de melancolia por Anna Friel, está seriamente perturbada, e a estrutura da série reflete sua desorientação e angústia. O que parece ser o mistério central, o retorno de um serial killer que ela não conseguiu capturar anos antes, está envolto em um número maior que o usual de subtramas falsas, cada uma violenta e deprimente por si só. Novos personagens são introduzidos sem explicação ao longo da temporada.
“Marcella” nos faz prestar atenção e força os telespectadores a acompanhar atentamente momento a momento. Eventualmente, muito rapidamente, você pode começar a sentir mais descrença do que gostaria. Detalhar as razões revelaria muito de uma trama multifacetada que liga assassinato em série, assassinato de aluguel, maquinações imobiliárias, melodrama familiar e os clichês usuais de investigação criminal (quadros brancos, perícia, diálogo expositivo).
O maior problema a esse respeito é que, desde muito cedo, não dá para acreditar que Marcella tenha permissão para estar no caso, porque ela mesma deveria ser suspeita. Os escritores percebem isso e tentam aliviar nosso desconforto com um daqueles discursos “Vou me arriscar por você” de um oficial superior. Mas à medida que seus apagões, acessos de raiva e violações de procedimento continuam, a improbabilidade se torna impossível de ignorar.
O principal escritor da série, Hans Rosenfeldt, tem experiência no subgênero de mulheres problemáticas dos programas policiais - ele criou “The Bridge” e sua heroína socialmente desajeitada e possivelmente autista, Saga Noren. Saga, entretanto, nunca parecia estar fora de controle.
Marcella é retratada como uma excelente detetive que se vê diante de um caso perdido de uma forma que não faz sentido (apesar dos traumas do passado que são apresentados como explicações), e seus apagões parecem desligados da trama, ali apenas para manter as coisas misteriosas. Mas, após o final da primeira temporada, você pode se ver tão no escuro quanto Marcella. Mas qual é o transtorno mental secreto que o personagem de Anna sofre que a deixa sem nenhuma lembrança do que aconteceu e a faz perder todos os seus sentidos? Se pensarmos psicologicamente, Marcella tem Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI).
Em uma entrevista para a mídia Inglesa, a atriz Anna Friel (Marcella) enfatizou que a série é muito mais um drama, não um documentário e, portanto, não deve ser vista como uma representação exata do distúrbio. No entanto, está claro que é o transtorno dissociativo o que inspirou o diretor, Hans Rosenfeldt, em sua representação de Marcella. Para entendermos um pouco mais, vamos pensar sobre o que causa o transtorno dissociativo de identidade.
O Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI) quase sempre está enraizado em um trauma da infância. O transtorno começa com base em uma “dificuldade de apego” que ocorre essencialmente quando a conexão de uma criança muito pequena com seus pais é interrompida. Essa interrupção geralmente é resultado de abuso físico, sexual ou emocional, mas também pode ser causada pela perda repentina de um dos pais em, por exemplo, um acidente de carro. Se uma criança perde sua “conexão primária” em uma idade muito jovem, ela pode desenvolver o transtorno.
Poderíamos pensar em um exemplo “típico” de trauma infantil que levaria ao TDI, “Digamos que haja uma menina, de aproximadamente quatro anos, que está sendo criada pelo pai. Durante a semana, ele faz tudo o que você esperaria que um bom pai fizesse em termos de suprir as necessidades físicas e emocionais de sua filha, porém ao chegar às sexta-feira ele vai para a “farra”, fica bêbado e ao chegar em casa, grita, briga ou bate em sua filha.”
Aqui teríamos uma criança emocionalmente imatura, que não consegue lidar com duas representações afetivas muito diferentes. Ela tem que se manter conectada ao pai que é o cuidador, mas ela só pode fazer isso se reprimir as memórias daqueles momentos em que ele faz o oposto, porque a mente desta criança não consegue conciliar os dois.
O mais comum e frequente é que o TDI está relacionado e se apresenta na infância, porque é quando o cérebro está se formando e a dissociação se torna um mecanismo de defesa, porém pode acontecer na fase adulta, mas geralmente apenas em situações extremas de grande estresse emocional. O TDI em adultos é normalmente uma ampliação do Transtorno Pós Traumático Complexo. No caso de Marcella, parece que a desordem se instalou após a morte de sua filha, Julieta, no berço.
Na primeira temporada, Marcella deixou claro que estava lutando contra um transtorno mental, ela tinha flashbacks bizarros e lutava para lembrar o que acontecia em algumas situações que se apagavam de sua mente. A detetive abordou o problema na segunda temporada revelando que sua personagem lida com estados de fuga esporádicos em andamento, sofre graves apagões e perda de memória como parte de sua condição.
Um estado de fuga, também conhecido como transtorno dissociativo, é uma condição mental. Embora haja uma variedade de formas do transtorno, existem três tipos principais em particular: distúrbios dissociativos de movimento ou sensação, amnésia dissociativa e distúrbio dissociativo de identidade.
A condição é caracterizada por apagões e perda de memória episódica, que podem ocorrer por qualquer período de horas a anos. Uma pessoa que luta contra o transtorno dissociativo pode sofrer problemas físicos e psicológicos, embora seja provável que supere a condição. As memórias não são perdidas, na realidade são compartimentadas, nada está perdido, simplesmente não se têm a chave para acessar essas memórias.
Esses apagões nem sempre são violentos, o que definitivamente nos faz lamentar que a série passe essa impressão tão errônea do transtorno, quando se associa a violência com o transtorno, podemos ser levados a pensar que essas pessoas que sofrem com TDI sejam psicopatas. A violência pode ocorrer se alguém foi abusado na adolescência, e/ou reagiu violentamente diante do trauma para tentar se proteger.
O que geralmente acontece nos casos de TDI é que as pessoas voltam a um “estado infantil”. Mentalmente, eles voltam à idade que tinham quando o trauma aconteceu. “É como quando um computador trava, ele volta para a última vez que você fez o backup”.
Na terapia isso acontece muito. Você está lidando com alguém que está em um corpo adulto, mas se comporta com todos os maneirismos, a linguagem e os movimentos corporais que você esperaria que uma criança de quatro anos tivesse. A terapia pode permitir que as pessoas se lembrem não apenas de seu trauma original, mas também dos eventos que ocorreram durante acessos subsequentes de amnésia.
Patrícia Atanes de Jesus Bernardinelli é Psicóloga Junguiana com Especialização em Terapia Sistêmica Familiar e Avaliação Psicológica, além de Psicologia Jurídica.
Atualmente pós graduanda em Criminal Profiling – Psicologia Investigativa.
Atende Crianças, Adolescentes e Casais em consultório particular em São Bernardo do Campo/SP.
Atua em casos da vara da família ou da infância como perita ou auxiliar técnica de acordo com a solicitação do fórum ou de uma das partes.
Seus interesses estão voltados para relacionamentos, transtornos e síndromes diversas que atingem os adolescentes (incluindo depressão, suicídio).
Sua paixão está no entendimento do funcionamento da Psique e seus simbolismos além da busca dos conceitos e preceitos psicológicos na literatura e cinema.
Acompanhe seu trabalho em:
email: patriciaatanes.psi@gmail.com
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