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Todo Dia a Mesma Noite: a História Não Contada da Boate Kiss

"Para nós, Seres Humanos, quanto vale a vida de nossos semelhantes?"

Ana Claudia Lourenço CRP 5/41795


Assim que assisti esta série, logo pensei no texto que escreveria para este blog, porém quando chegou a hora de sentar e escrever, confesso que fiquei tensa.

A série passa muita realidade, muitas emoções de amor e compaixão, mas também muitas emoções de revolta e aversão.

É muito difícil acreditar que em pleno século XXI, o ser humano ainda esteja mais preocupado com fama, poder, status e dinheiro, do que com a vida de seus semelhantes.

A série trata de um incêndio real, ocorrido na Boate KISS, em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Santa Maria é uma cidade conhecida principalmente por ser um centro universitário. Este incêndio vitimou muitos jovens de forma física, mental e fatal, mudando a vida de várias famílias e da comunidade local.

Acompanhando os principais personagens, pude observar as fases do luto (negação, raiva, negociação, depressão e aceitação) das famílias das vítimas sobreviventes, que precisaram encarar uma vida nova, bem diferente da que conheciam.

A estudante Grazi, uma das personagens, não queria ir na festa da boate para poder estudar, porém mudou de ideia quando ganhou um convite de Antônio, rapaz que parecia estar interessado em um relacionamento com ela. Na hora do sinistro, Grazi e Antonio estavam distantes e se perderam com a correria, o pânico, a escuridão e a fumaça. Grazi teve muitas queimaduras pelo corpo e parte de uma de suas pernas precisou ser amputada. Antonio tentou visitá-la, mas acabou desistindo ao vê-la tentando andar, utilizando um andador.


Grazi teve raiva por não conseguir andar, dançar ou fazer as unhas. Deprimiu-se, recusou convites para sair, porém aos poucos encontrou forças para aceitar sua nova condição e lutar para ser feliz. Senti sua força quando ela encontrou Antonio pela primeira vez após o acidente e, magoada pelo abandono, fez questão de mostrá-lo que estava bem, apesar de meio biônica (palavras dela), dizendo para ele: “Não fala nada não, você fez o que teve força para fazer”.

Fernando é outro personagem importante desta série. Formando em medicina veterinária, ele também não queria ir à boate naquela noite, só o fez, por insistência de um amigo. Fernando teve quase todo seu corpo queimado e precisou fazer mais de sete cirurgias. Cansado, abatido e em estado melancólico, encontrava forças em conversas com Grazi, que, apesar de suas perdas, com bom humor lhe dizia: “temos que ri para não chorar” e acrescentava “somos fortes, eu vou conseguir dançar e você vai voltar a tocar violão”.

Guilherme, Filipinho, Marco e Mari foram vítimas fatais, aqui representados pelos seus pais Geraldo, Ana, Ricardo e Pedro. Todos estes pais passaram pela negação de aceitarem a morte trágica de seus filhos. Ana foi ajudar um amigo, mas se recusava a crer que seu filho poderia ser uma das vítimas. Ricardo procurou o seu carro no estacionamento da boate, na esperança de não o encontrar. Pedro se negou, relutou a buscar a filha no ginásio, local para onde foram levados os corpos dos jovens. Geraldo tentou barganhar sua vida pela do filho, achava que, se ele tivesse morrido quando teve o derrame, o filho não teria ido àquela festa. Como se essa negociação fosse possível.

Neste cenário de caos aparece a figura da Cap. Idalina, enfermeira e capitã da brigada militar, que coordenou as ações de resgate e reconhecimento dos corpos. A todo momento ela tratou o caso com bravura, assertividade e respeito. Sempre com muita humanidade, mesmo sem ter mais nenhum sobrevivente na boate, ela dizia “temos que devolver estas crianças para seus pais”. Cuidadosa com os corpos não identificados e com os familiares que buscavam seus filhos, Cap. Idalina era dura e determinada, mas ao mesmo tempo acolhedora e empática.

Unidos pela dor da perda e pela raiva de não terem uma resposta satisfatória sobre o que realmente havia ocorrido naquela noite, os pais formaram uma corrente de fraternidade e juntos se ajudavam e buscavam por justiça. Sem esta luta, e sem os filhos, a vida parecia perder o sentido. Pedro, pai de Mari, deixou isto transparecer em uma de suas falas, “se eu não fizer isto, o que eu vou fazer”.

Após a descoberta e a denúncia de inúmeras irregularidades por parte dos donos da boate, com conivência de bombeiros, funcionários da prefeitura e do ministério público, os pais foram ameaçados através de processos, na intenção de que eles recuassem das denúncias feitas. Quatro anos depois da tragédia, nenhum culpado havia sido condenado, porém os pais poderiam ser presos, por crimes inventados, na intenção de proteger pessoas poderosas.

Três falas foram muito emblemáticas para mim:

Pedro (pai de Mari) – “Por que nossos filhos morreram? Quem comprou os fogos, quem colocou espumas erradas, quem assinou as vistorias, quem assinou o alvará de funcionamento?” “Minha filha não está mais na minha casa, todos os dias.”

Ricardo (pai de Marco) – “Os pais deixam seus filhos frequentarem casas de show porque confiam na prefeitura, nos bombeiros, nas autoridades e no Estado.”

Promotor – “Se denunciarmos todos os 28 acusados (incluindo políticos e pessoas poderosas) levaria muito tempo para ouvirmos todos, então decidimos indiciar só estes” (os bombeiros, os donos da boate e alguns integrantes da banda que causou o incêndio através do uso de fogos indevidos).

242 pessoas morreram. O julgamento dos culpados, aconteceu 9 anos depois do incêndio. Quatro dos réus foram condenados, porém este julgamento foi anulado 9 meses depois, por questões processuais. Este ano, em 27 de janeiro de 2023, 10 anos depois da tragédia, os réus continuam em liberdade, aguardando novo julgamento.

Deixo aqui alguns questionamentos, sem a intenção de julgar, mas para que possamos refletir qual seria nosso posicionamento, estando no lugar de alguns destes personagens, exercitando nossa empatia.

. Como você agiria se fosse o Antônio, o amigo que deu o convite para Grazi?

. Como você agiria se fosse o promotor do caso, agiria contra os pais, mesmo sabendo a verdade dos fatos?

. Como você agiria se fosse o dono/sócio da boate, negaria sua responsabilidade, pensando somente em sua reputação e seu patrimônio?


Aquela noite já acabou para todos nós, menos para os sobreviventes e familiares das vítimas fatais. Eles até hoje vivem todo dia a mesma noite.



Ana Claudia Lopes Lourenço é Psicóloga, Master Coach Pessoal e Consultora de Recursos Humanos.


Seu trabalho tem como base a Terapia Cognitivo-Comportamental e a Psicologia Positiva.


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