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O Conto da Aia e a divisão das Mulheres

por Carolina Luz de Souza - CRP 06/87499


O Conto da Aia é uma série do canal Hulu, baseada no livro de mesmo nome da autora Margaret Atwood, escrito em 1985. A série é uma distopia, ou seja, retrata uma sociedade imaginária na qual se vive em extrema opressão.


Ela se passa em uma época futura, em que os Estados Unidos foram tomados por um grupo de fundamentalistas religiosos que mataram o presidente, explodiram o Congresso e instauraram um novo regime e uma nova sociedade, Gilead. Aparentemente, é impossível imaginar que algo assim pudesse acontecer na maior potência mundial. Mas a série nos apresenta a cada episódio informações que vão construindo o quebra-cabeças de como tudo isso veio a acontecer.


Na história, devido a várias questões (degradação do meio ambiente, DSTs, lixo tóxico) as taxas de fertilidade caem absurdamente e os poucos bebês que nascem morrem logo em seguida. Algumas poucas mulheres permanecem férteis e essas são as que mais sofrerão no novo regime, pois serão escravas: as aias. As aias deixarão de pertencer a si mesmas para pertencerem ao Estado. Seus corpos, ou melhor, seus úteros, serão utilizados para a procriação que está agora ameaçada. Elas passam por uma longa lavagem cerebral recheada de traumas físicos e psicológicos para que aprendam a servir a seus senhores e a Deus.


Cada aia é despida completamente de sua individualidade, devendo ser uma representação viva dos valores que é forçada a seguir. Para isso são obrigadas a usar apenas roupas vermelhas, símbolo de sua condição fértil, e toucas brancas que cobrem seus cabelos (símbolo da sexualidade) e não lhes permitem olhar para os lados. Seus gestos e até vocabulário são exaustivamente trabalhados para que não deixem transparecer nada que remonte à pessoa que foi. Uma aia não é uma mulher individual, ela é coletiva.


Até mesmo seu nome não lhe pertence mais. Ela não é alguém, ela é “de alguém”. É assim que conhecemos Offred, que antes de Gilead chamava-se June. Offred significa “de Fred”, o comandante a quem ela serve. Os comandantes sempre vestem preto revelando sua sobriedade e seu posto de chefia naquela sociedade. Cada comandante tem uma Esposa, que veste azul claro, cor sóbria e fria, demonstrando que aquela relação é espiritual e não carnal. As Esposas não podem conceber e é aí que entram as aias. Cada comandante é agraciado com uma aia com quem terá relações sexuais para fins de procriação. Offred existe apenas para gerar um filho para seu comandante e a esposa.


Acompanhamos a complicada relação entre esses três personagens: um homem que comanda a casa e as mulheres como suas propriedades; uma mulher que tem algum prestígio na sociedade, mas apenas relativo ao seu papel, sem deixar de sentir inveja da capacidade procriativa da outra; e uma mulher que foi subtraída de seus desejos, pensamentos e até de seu nome, se tornando um útero a ser fecundado. Sem passado, sem presente, sem futuro.


Offred nos explica que essas mudanças radicais não se deram do dia para a noite. Foram produzidas por um sentimento muito grande de medo: do terrorismo, da infertilidade, da dissolução dos valores que a sociedade americana pregava. Aos poucos, os direitos das mulheres foram sendo retirados um a um. Não podiam mais trabalhar e dependiam de seus maridos até para utilizar seu próprio dinheiro. E com um atentado que matou o presidente e os deputados, o grupo extremista religioso Filhos de Jacó toma o poder para “restaurar a ordem” e acaba instaurando uma sociedade totalitária de castas.


O conto da aia fala sobre uma possibilidade de futuro assustadora, mas que parece distante num primeiro momento. Porém, fica muito mais perto se pensarmos nas sociedades fundamentalistas do presente, nas quais a mulher não tem nenhum direito e é tratada como propriedade, seja do Estado, seja dos homens.


Em um nível mais sutil, podemos perceber o simbolismo nessa história da forma como as relações de gênero são vividas em nossa própria sociedade. Começando pelo fato de que as mulheres em O conto da Aia são divididas em castas, cada casta representando o papel que ela desempenha na sociedade mas também sua posição em relação aos homens.


Então temos as Esposas que, como foi dito, são etéreas e cordatas. Têm uma boa posição social, mas, ainda assim, poucos direitos. Assim como todas as mulheres, não podem ler, não podem estudar. Não podem ter voz. E existem para ocupar seu lugar como coordenadoras do lar e apoiadoras do marido.


As Esposas são a representação do complexo de Madona, mulheres virtuosas, e estão nesse ponto em oposição às aias, que são vistas e invejadas como prostitutas pelas esposas, pois seus maridos as estupram com seu consentimento na tentativa de gerarem uma criança. Após o nascimento da criança, a aia a entrega para a esposa que cuidará como se fosse sua. Simbolicamente, sai de cena a mulher sexual e fértil e entra em cena a mãe. A disputa entre os opostos madona e prostituta é tão elevada, que a esposa é dessexualizada e dá a luz sem fazer sexo. A aia a substitui em todas as matérias corporais, sexuais e fisiológicas, deixando as esposas apenas com as tarefas espirituais. É o auge da dissociação feminina. Mas em nossa sociedade muitas vezes dividimos as mulheres entre prostitutas e santas, para curtir e para casar, mães e vadias.


As mulheres que não são mães ou objetos, usam roupas cinza e realizam as tarefas domésticas. São as Martas, mulheres não férteis cuja única possibilidade de existência é limpar, cozinhar e costurar para os homens a quem servem.


As Tias vestem marrom e são elas as responsáveis pela lavagem cerebral à qual as aias são submetidas e à fiscalização de suas atitudes e deveres. As Tias se vestem e se comportam de forma muito masculina, abdicando de seus sentimentos e mostrando-se como cruéis seguidoras da lei, mesmo contra seu próprio sexo. Martas e Tias não são férteis e não são objetos de desejo.


Todas as mulheres em Gilead existem apenas para cumprir as funções que os homens necessitam delas, seja de esposa, objeto sexual e procriadora, empregadas ou controladoras das outras. Elas não existem por si sós e a maior parte de sua interação é de subjeção aos homens e confronto entre elas.


Nossa sociedade nos convenceu de que mulheres não são confiáveis e que estão sempre disputando por homens ou poder. O conto da aia mostra essa divisão de forma extrema mas não irrealista. Cada casta representa um papel atribuído à mulher e ela deve apenas ser e viver de acordo com aquele papel.


Quantas mães sofrem por serem vistas como seres sublimes e sem desejos próprios? Quantas mulheres são tratadas pelos homens apenas como objetos sexuais? Quantas outras são vistas apenas como trabalhadoras, empregadas domésticas que devem priorizar sempre as necessidades dos patrões? Quantas mulheres sentem que precisam abrir mão de sua feminilidade para manterem seu poder? E como a sociedade patriarcal em que vivemos nos divide ainda em castas e nos incita a disputarmos espaço umas com as outras?


O conto da Aia pode ser visto como uma distopia, mas também pode nos trazer importantes reflexões sobre nossa própria sociedade e nossa forma de tratarmos umas às outras.

Carolina Luz de Souza (CRP 06/87499) é psicóloga junguiana e perinatal e mestre em Psicologia Clínica. Atende mulheres, gestantes e crianças presencialmente em Sertãozinho-SP e também de forma online para todo o Brasil e o exterior. É apaixonada por séries e atualmente está trabalhando em sua monografia sobre O conto da aia e a sociedade brasileira. Acompanhe seu trabalho em:

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