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Cobra Kai – O Vazio de uma Conquista

por Luis Fernando Toniollo Reis, CRP 06/97542


“O segundo nada mais é do que o primeiro dos perdedores.” (Ayrton Senna)


Em nossa sociedade, a identidade e autoestima masculinas estão bastante ligadas ao desempenho em competições esportivas. Isto é muitas vezes apontado como a versão moderna da arquetípica Jornada do Herói, adaptada para tempos pacíficos e sem territórios inexplorados para descobrir. Em Karate Kid, filme de 1984, temos um exemplo típico desse fenômeno: Daniel, um adolescente com dificuldades de adaptação que sofre com a violência dos pares, é salvo por um mestre das artes marciais e este o submete a rigoroso treinamento. Como resultado, ele se desenvolve fisicamente e mentalmente, vencendo o torneio local contra quem o agredia, e para coroar suas vitórias pessoais, ganha o afeto da garota por quem se apaixonou.


No entanto, diferentemente dos mitos, torneios e contos de fada, a vida real continua, exigindo feitos menos heroicos dos homens, tais como pagar contas, procurar trabalho e criar uma família.


Assim, o seriado Cobra Kai, do canal Youtube Red, continua a história do filme 34 anos depois (com os mesmos atores), a partir da vida de Johnny, o vilão da história e derrotado do torneio. Este é o primeiro incômodo, mostrar que o vilão não simplesmente desaparece com o fim da história (quando não morre convenientemente). Ele simplesmente continua sendo quem é, tendo uma vida de adulto para levar. E esta, no caso, não é das mais agradáveis: sobrevivendo por meio de bicos, morando em uma casa bagunçada, lidando com o alcoolismo, sem amigos, família ou qualquer pessoa que lhe dê suporte ou afeto; Johnny não demonstra ter aprendido nada com suas dificuldades, mantendo a atitude arrogante que lhe proporcionava popularidade na adolescência, mas agora de forma totalmente desadaptada.


Diante desse estado lamentável, a série joga várias evidências de que ele está fixado ao passado. Entre elas, o retrato da namorada de tempos de colégio, o mesmo filme de guerra passando na TV, o suspiro quando ele passa perto de certos locais, até seu carro funciona como uma metáfora de si: um V8, carro potente que fez muito sucesso décadas atrás e hoje é considerado pesado e custoso. Diante do pouco brilho de sua vida atual, é compreensível que o passado seja uma espécie de refúgio, no qual Johnny foi um atleta de alto nível, embora não tenha sido o melhor, e como não teve preparo para lidar com esta derrota, culpe Daniel por ter ofuscado sua chance de vencer na vida.


Em contraste gritante, a vida de Daniel parece ser o exato oposto: vivendo em uma mansão, com uma família que lembra um comercial de margarina, ele é o mais bem-sucedido vendedor de carros da região, convivendo com a alta classe local e sendo um exemplo de sucesso para todos. Lembrando-se de sua ascensão social, ele não deixa de creditar suas vitórias ao seu período de treinamento em artes marciais e a seu antigo mestre. Como não poderia deixar de ser, sua constante aparição em comerciais e outdoors irrita seu antigo rival profundamente.


Toda a trama da série se concentra no reencontro entre os dois personagens, provocado por um acidente no qual a filha de Daniel estava envolvida. Simbolicamente, podemos sugerir que a rivalidade era uma questão a ser resolvida em suas vidas, e por mais que os envolvidos tentassem fugir, em algum momento ela iria fatalmente ser colocada diante deles, através de uma série de coincidências, forçando-os a lidar com isso.


A partir desse momento, vemos toda a estabilidade conquistada por Daniel ruir como um castelo de cartas, e os dois personagens, que pareciam tão divergentes, se assemelham na infantilidade das provocações. Enquanto Johnny mantém a arrogância de seus tempos de juventude mesmo enfrentando dificuldades reais de subsistência, Daniel volta a sentir o medo e intimidação daquela época, sem perceber a real desproporção entre seus poderes atualmente. Neste momento vemos um tema recorrente na série: uma pessoa mansa, vítima de violência, só está nesse estado por não ter os meios de praticá-la?


Inegavelmente, este conflito os leva de volta ao caratê, o que acaba movimentando suas vidas de forma significativa. Pelo lado de Johnny, este passa a tomar iniciativas que rompem uma inércia de décadas, injetando vitalidade e sentido a uma vida que parecia tê-los perdido. Já pelo lado de Daniel, percebemos uma falta que sempre esteve presente, embora não admitida. Ele tentava desesperadamente encaixar preceitos e técnicas do caratê em sua vida de comerciante, o que era visto como, no máximo, uma excentricidade. Agora ele percebe uma oportunidade perfeita para colocá-los em prática.


Nesta volta às artes marciais, um novo desafio se apresenta aos personagens: qual o papel mais adequado a eles em seus estágios atuais de vida, já que não podem simplesmente competir em torneios como no passado. Para esta tarefa, o ponto central é o relacionamento com as novas gerações, o que esbarra em valores arraigados e os leva a importante desenvolvimento interno.


A série nos dá um vislumbre de como as competições esportivas tem imensa influência sobre a masculinidade contemporânea. Nela, vemos como o resultado de uma competição separou duas vidas, uma rotulada como “vencedora” e outra como “derrotada”, deixando a vida adulta secundária diante dos feitos da adolescência. Isto pode nos dar uma pista sobre o mal-estar e falta de sentido que muitos sentem ao chegar em determinado momento de suas vidas.


Luis Fernando Toniollo Reis é psicólogo (CRP 06/97542) formado pela UFSCar e mestre pela mesma instituição. Já atuou em pesquisa experimental e saúde pública, atualmente está trabalhando na área clínica e na assistência social. Atua principalmente com adultos e pessoas em uso de substâncias psicoativas.

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