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Eram os deuses imigrantes? (Deuses Americanos)

Por Leonardo Veiga Guarnieri, CRP 07/27235


Deuses Americanos, criada por Bryan Fuller e baseada em um romance do autor britânico Neil Gaiman, tem um ponto de partida hipotético bastante interessante: e se os povos que imigraram para os Estados Unidos tivessem trazido consigo não só suas religiões, mas seus próprios deuses, em carne e osso? Como eles estariam se virando hoje em dia?


A partir dessa premissa, a série aborda tópicos delicados como a fé na contemporaneidade e as questões colocadas pela imigração e a constituição social e histórica dos Estados Unidos como um país de diversidade cultural, religiosa e racial – bem como os conflitos que derivam dela. Os temas da identidade, da alteridade e do estrangeiro permeiam toda a narrativa, dando a ela um caráter bastante atual.


Apesar do título, os seres fantásticos da série não se limitam a divindades, incluindo figuras mitológicas, árabes, irlandesas, nórdicas e de culturas africanas. A série os mostra chegando ao continente americano junto com esses povos que cruzaram o Atlântico, como os vikings, no século X, os escravos trazidos à força durante o período colonial, e muitos outros. Eles não aparecem como conceitos abstratos, mas sim em carne e osso, antropomorfizados – feitos à nossa imagem, poderíamos dizer. São deuses que sangram, que se embebedam, que se metem em brigas e que precisam, inclusive, ganhar a vida e pagar seus boletos.


Nos dias de hoje, essas divindades perderam grande parte de seus poderes divinos e fazem o que podem para se sustentar. Assim, já no começo da série somos apresentados a um numeroso e inusitado elenco de personagens secundários: um jinn árabe que dirige um táxi pelas ruas de Nova York; um leprechaun irlandês encrenqueiro que precisa sustentar seu alcoolismo; uma versão do deus egípcio Anubis que trabalha administrando uma funerária, entre outros. Até Cristo aparece, e em múltiplas faces, uma para cada denominação religiosa, incluindo encarnações mexicanas, negras, asiáticas, e até uma hippie. Cada religião acredita e, portanto, vê e sustenta uma versão de sua divindade.


Quando digo sustenta, é porque daí deriva todo o conflito da série. Esses deuses dependem da fé dos seus devotos e, muitos deles, vindo de religiões antigas ou quase extintas, encontram-se em crise. No universo da série, essas deidades tradicionais estão sendo rapidamente substituídas por aqueles que aparecem como os vilões, os “Novos Deuses”. Entre eles, a Tecnologia, na forma de um adolescente petulante, sempre vaping em sua limousine branca, e Mídia, que toma os rostos de Marilyn Monroe, David Bowie, Judy Garland e outros artistas famosos da cultura popular. Mídia, aliás, interpretada pela espetacular Gillian Anderson, resume o conflito da série no segundo episódio. Chamando os antigos deuses de obsoletos, ela afirma que as telas são os altares da era contemporânea, onde as pessoas ofertam não mais o sangue de sacrifícios, mas sim seu tempo e atenção, devotando-os a ela. A mensagem é clara: o tempo dos deuses acabou.


É esse confronto que acompanhamos pelos olhos de Shadow Moon, apresentado pela série como um homem comum jogado em situações fantásticas. Após uma tragédia que o deixa sem rumo, ele se vê envolvido no plano de Mr. Wednesday, que pretende reunir todos os antigos deuses para enfrentar as novas divindades que os ameaçam em uma guerra sangrenta e retomar de vez o lugar que seria seu por direito. É fácil identificar-se com Shadow, que no começo não tem ideia do que se passa e, aos poucos, aprende a navegar esse mundo infestado de deuses, magia e criaturas sobrenaturais, inteiramente novo e completamente bizarro para ele.


A alteridade, o outro visto como estrangeiro, a assimilação e a apropriação cultural são todas questões importantes para a narrativa. Trata-se, afinal, de uma história sobre imigrantes. Tendo sido trazidos ao continente à força, exilados de suas terras, ou mesmo forçados a vir em busca de oportunidades, esses antigos deuses precisam lidar com a própria decadência, vivendo em uma terra que não os aceitou particularmente bem.


Esse é um dos paradoxos colocados em jogo pelo processo imigratório. Enquanto se espera que os recém-chegados se adaptem facilmente às normas e costumes locais, eles ainda assim são constantemente lembrados de sua condição de estrangeiros. A ideia de assimilação traz consigo o caráter de um objetivo impossível, sempre inalcançável. Não só isso, mas opera uma forte violência simbólica, que atua por duas vias. Por um lado, todos os traços culturais que não são considerados aceitáveis na “terra prometida” precisam ser abandonados, forçando um apagamento identitário capaz de gerar confusão, sofrimento e mesmo trauma. Por outro lado, as práticas e costumes aceitos são absorvidos pelas culturas dominantes, que escondem a apropriação cultural sob reivindicações de serem ecléticas ou cosmopolitas.


Nesse ponto, uma cena dos episódios finais da primeira temporada é bastante interessante. Diante da fartura de uma grande celebração da Páscoa, Mr. Wednesday diz a sua anfitriã, Ostara, que ninguém mais se lembra de seu nome e que as pessoas não celebram mais o equinócio de primavera, mas sim a ressurreição de Cristo, a quem todas as preces são dirigidas. Podemos pensar que algo similar, em maior grau e intensidade, ocorre com os elementos das culturas indígenas, asiáticas e africanas que encontramos disseminados em nossa sociedade ocidental. Essa absorção chega a ser canibalística, devorando o núcleo de tradições anteriormente transmitidas geracionalmente e produzindo, a partir delas, estereótipos que apenas reforçam preconceitos e a exclusão desses povos. Não é coincidência que a religião surge como uma esfera fértil para a discussão desses fenômenos, estando no centro de diversos conflitos ao redor do mundo. A proibição de certas formas de culto e a perseguição de seus praticantes funcionam de forma concomitante com a adoção estética de símbolos religiosos e a transformação de certas práticas em modas.


É certo que, ao escrever o livro, Neil Gaiman, autor britânico residente nos Estados Unidos, quis criar uma história pró-imigração. Todavia, por um olhar crítico, também podemos apontar o tratamento problemático de certos temas na série. Ao menos ao longo da primeira temporada, não encontramos nenhuma aparição dos povos nativos. É claro que a história possui outro foco, ao centrar-se nos povos que vieram ao continente americano, mas é difícil pensar nesses movimentos sem considerar suas consequências para aqueles que ocupavam essas terras originalmente. Além disso, o fato de que “ninguém é originalmente americano” é afirmado por Wednesday no livro, em uma fórmula problemática atualmente. Resta ver como a série lidará com isso em sua segunda temporada, atualmente em exibição.


Outro ponto é que, se é fácil ver os deuses antigos como os “mocinhos” da história, as coisas são mais complicadas que isso. Desesperados e sedentos por atenção, devoção e fé, eles aparecem como personagens complexos, despertando sensações ambíguas. Por exemplo, no terceiro episódio, Wednesday profere uma das citações mais polêmicas do livro, afirmando que os Estados Unidos são o único país do mundo que se pergunta sobre sua identidade. É uma visão bastante europeia, que vê na diversidade social não uma potência, ou mesmo um atributo próprio, mas uma confusão identitária que seria problemática.


Ainda assim, podemos encontrar muito em Deuses Americanos que pode nos ajudar a pensar assuntos complexos e que estão em pauta atualmente. Não só nos Estados Unidos, onde o presidente atual elegeu-se após uma campanha que teve como principal proposta a construção de um muro na fronteira com o México, e na Europa, que viu a eclosão de algo que foi nomeado uma “crise migratória” ainda nessa década, mas também aqui no Brasil. Afinal, nosso país também foi formado por processos imigratórios violentos, que tiveram e ainda têm consequências bastante graves, para os povos nativos e para aqueles trazidos para cá, com as quais ainda precisamos nos haver. Além disso, a vinda de refugiados, que tem recebido destaque na imprensa devido à crise na Venezuela, segue ocorrendo. E se o Brasil teve um papel importante no acolhimento de refugiados durante as últimas décadas, o governo atual tem buscado anular esses esforços, assumindo uma postura ultraconservadora em relação à imigração. Mantendo-se essas tendências, há boas chances que o tema se tornará ainda mais relevante nos próximos anos.


Não é à toa, enfim, que uma história que se passe nos Estados Unidos e que fale de deuses antigos consiga ressoar tão facilmente por essas partes….


Leonardo Veiga Guarnieri é historiador e psicólogo, CRP 07/27235. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisa o tema da escrita e suas relações com a clínica. Atua na clínica particular, a partir do referencial psicanalítico, em Porto Alegre/RS. Contato: leonardovguarnieri@gmail.com

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