por Psicóloga Deise Jardim, CRP 07/13101
A série Wanderlust, de 2018, coprodução da BBC com a Netflix, possui apenas uma temporada, mas já deixa uma série de indagações e reflexões. Hoje, o que quero trazer como pano de fundo para análise é a vida de Joy Richards, a personagem principal da série. Joy é terapeuta há 20 anos, atende pacientes individuais e casais, usando a psicodinâmica e a psicanálise. A série inicia com ela experimentando retornar às suas atividades rotineiras após um período de molho, devido a um acidente de bicicleta. A partir deste momento, uma série de movimentos se dá, nessa tentativa dela para retomar a sua vida, o que acaba por ter reflexo também no seu casamento com o professor Alan. Eles têm três filhos: Tom, um adolescente descobrindo a sexualidade; Naomi, homossexual que em algum momento “surge” em casa, após término de relacionamento amoroso e Laura, que também aparece na série voltando para a casa dos pais, bêbada e carregada por amigas, após uma desilusão amorosa.
Joy quer retomar a sua vida sexual com Alan, mas ao fazer algumas tentativas, percebe que eles não têm mais conexão para o sexo. Ele acaba se envolvendo com uma professora, colega na escola onde leciona, e Joy se envolve com um colega de hidroginástica. Depois dessas “escapadas” eles conversam, contam um para o outro o que aconteceu e Joy sugere que eles abram o relacionamento, já que a questão sexual está delicada entre eles. Inicialmente, Alan é contra, mas depois aceita e assim eles iniciam uma busca por algo fora de casa, algo que já não têm dentro. O mais interessante é ver que buscar sexo fora não afasta um do outro, muito pelo contrário, quando se reencontram, estão cheios de desejo um pelo outro. O que os surpreende e veem como bom sinal para manterem a saúde do relacionamento.
Em todo episódio é exibido Joy com algum paciente e também ela na sua terapia pessoal com Angela, onde podemos ter uma ideia do que a move nas suas decisões e entender um pouco sobre o que ela deseja da vida, seus medos e seus prazeres. Joy tem um medo que carrega e que mede seus passos: um paciente acabou por cometer suicídio depois de tentar contatá-la por telefone e ela não atender. Em seu inconsciente traumatizado, ela precisa estar sempre disponível, para que isso não volte a acontecer. Por isso, muitas vezes, parece “pisando em ovos” quando quer abordar algum tema com seus pacientes, com medo de ser dura demais e provocar um desconforto com consequências fatais.
Em sua vida pessoal, Joy se aventura muito mais. Começa a sair, conhece pessoas interessantes, se diverte, se solta. Numa dessas saídas encontra a filha com um de seus pacientes e isso a deixa desconcertada. A filha a vê se divertindo com outro homem que não o pai e isso a choca. É preciso encaminhar o paciente para um colega, pois não poderá continuar atendendo depois do envolvimento dele com a filha. Falar sobre isso é delicado, o medo de que ele se sinta rejeitado a preocupa, mas é preciso. Ao mesmo tempo, Joy e Alan resolvem contar para os filhos a decisão que tomaram de buscar sexo fora do casamento. Isso os assusta.
É importante mencionar que Joy e Alan fizeram um “acordo” quando resolveram abrir o casamento: Não se envolveriam emocionalmente, seria apenas sexo. Porém, Alan se envolve com a professora Claire, gosta do que está vivendo e quebra o acordo, se apaixonando. Com isso, a relação dele e Joy sofre uma rachadura. Por um tempo eles ainda tentam fazer dar certo, passam a sair juntos, dois casais, para se conhecerem melhor, mas o assunto da “liberdade” do casamento de Joy e Alan vaza para a escola dele e Claire e os pais dos seus alunos começam a reclamar da “falta de vergonha na cara” desses professores, cobrando uma posição da diretoria. Assim também acontece com um casal que Joy atendia no consultório. O marido comenta que a esposa não quer seguir com a terapia, pois não vê credibilidade numa terapeuta que está em crise no próprio casamento.
Todo este desenrolar, faz Joy levar para a sua terapia algumas questões relacionadas a quem ela é de verdade, como deveria se portar, que “máscara” deveria usar para seus pacientes a aceitarem e comenta com a terapeuta que tenta ser para eles o que eles querem que ela seja. A terapeuta a questiona quanto a essa maneira de ser. Joy fala do caso do paciente que suicidou-se após tentar falar com ela e não conseguir e traz no tom da voz uma certa culpa por não ter simpatizado com ele durante o processo de terapia. Acompanhou o casal por cerca de oito meses e não conseguia se sentir confortável com o marido, que era um pouco agressivo com a esposa e havia traído essa diversas vezes. Joy parece ter tomado as dores da esposa e portanto não conseguiu desenvolver empatia pelo marido e entender a tentativa de salvar o casamento, que fazia com que buscassem o tratamento. Quando ele telefonou para ela, preferiu não atender e depois passou a se atormentar com a culpa e com a dúvida de que poderia ter feito algo para evitar aquele desfecho trágico.
A sociedade preconceituosa desta cidade pequena onde se passa a trama, não perdoa a maneira “moderna” do casal viver sua intimidade e as pressões passam a vir do todos os lados. Passam a ser o assunto da cidade. Joy sente a necessidade de se retratar na escola de Alan e Claire, o que só piora a situação e a exposição. Depois disso, ela e o marido discutem e ela escuta dele algo que lhe dói profundamente: “Eu nunca senti por ninguém o que sinto por você, Joy, mas nunca senti por você o que sinto pela Claire”.
Em um dos últimos episódios, Joy relembra, na sua terapia pessoal, alguns funerais pelos quais passou. No da mãe, quando era ainda jovem, ela recordou do pai do ex-namorado Lawrence lhe dizendo que estava tudo bem ela não ser como gostaria de ser num dia como aquele, não se sentir “normal”. Isso fez ela se sentir acolhida e lembrar do quão generoso ele era. E agora que Lawrence havia avisado da morte do pai, tudo viera à tona. Surgem sentimentos confusos sobre a morte, lembranças da perda da mãe e a forma com que seu pai lhe pediu para não fazer nenhuma “cena” no velório, engolir seus sentimentos, não sentir. Associou à lembrança da perda do paciente, meses atrás, e do quanto isso ainda a abala e está intimamente ligada ao seu acidente de bicicleta, pois ela havia avistado Emily, a esposa do suicida, na calçada, se distraiu e o carro bateu nela.
Se sente sim culpada e responsável pelo suicídio dele, mesmo sua terapeuta tendo lhe descrito uma série de fatos, em um dos episódios mais profundos sobre os comportamentos e sentimentos de Joy, que retrata exatamente sua postura frente à morte, desde a perda da mãe. Desde que o pai lhe sugeriu, antes de entrar no velório da mãe, que ela não deveria ser ela mesma e sentir essa perda do seu jeito, passou a evitar sentir muitos momentos. A terapeuta lhe diz que não tem problema nenhum sentir, muito pelo contrário, ela tem que se permitir voltar a sentir, em vez de ficar buscando subterfúgios para escapar de suas emoções.
Em meio a isso tudo, seu relacionamento com Alan desanda, ele sai de casa, vai tentar a vida com Claire que logicamente não dá certo, porque ali cada um busca satisfazer uma necessidade e relacionamentos que iniciam assim, têm tendência a fracassar. No fim, ele volta a se encontrar com Joy, que na ausência do marido volta a lembrar de momentos vividos ao lado dele desde o início: os passeios, o casamento, a gravidez. Percebe e identifica o que sente ainda pelo marido e vê que é ao lado dele que mora sua estabilidade emocional e sua paz. Quando vê a reciprocidade de Alan, dizendo que gostaria de encontrá-la, sente o caminho aberto para tentar um recomeço, como se fosse o princípio de tudo, marcam um encontro e tentam voltar a viver de onde pararam, embora estejam agora cheios de novos conceitos sobre estabilidade, felicidade e casamento.
A profundidade e a possibilidade de reflexão presentes em algumas cenas, me fizeram querer assistir novamente esse drama que apresenta cruzamentos de emoções e histórias. Série que exige reflexão do que realmente importa na vida e do quanto nossas experiências determinam nossas emoções e comportamentos futuros. Nossas vivências fazem de nós o que somos, com qualidades e defeitos, e isso é determinante para a forma com que enxergamos as novas experiências. Se elas nos remetem dor, é normal que tentemos evitar, porém se elas se associam a momentos de alegria e prazer, provavelmente iremos querer repetir. Joy tentou lidar com o seu “sentir” saindo do que lhe parecia um problema, sem ver que assim criava tantos outros, coisa que sempre fez. Na terapia, Angela lhe disse a realidade e lhe sugeriu retornar para o seu verdadeiro “eu”, retornar ao seu caminho.
Deise Jardim – CRP 07/13101 – é psicóloga clínica há mais de 15 anos, trabalha com traumas, fobias e estresse pós-traumático, com adultos e crianças acima de 6 anos, de forma presencial e online. Tem formação em EMDR – Dessensibilização e Reprocessamento por meio de Movimentos Oculares – há 8 anos (INFAPA). Também tem formação em PNL e Coaching pelo Conexão Alpha e é apaixonada pela mente humana e pela capacidade que um cérebro traumatizado tem de se curar com o tratamento certo.
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