por Andrey da Silva Aires - CRP 07/33087
The Bold Type é uma série da Netflix que tem muitos temas e assuntos que dariam ótimas reflexões. Mas para efeitos desta edição, eu decidi falar um pouco sobre um ponto de vista pouco explorado: como são as situações de abuso/violência a partir do ponto de vista de quem comete o ato?
Para pensar nisso, vamos usar uma situação que ocorre no episódio s03e03 intitulado “Genial”, que aborda o encontro do personagem Alex com uma mulher com a qual ele teve relações sexuais no passado. Ambos são jornalistas, e motivação do encontro foi um artigo que esta moça escreveu sobre uma situação de abuso que viveu em seu passado.
Alex busca por este encontro com a intenção de congratular a amiga pelo ótimo trabalho, mas fica chocado ao descobrir que ela havia baseado a experiência no encontro que ambos tiveram. A partir daí, o episódio acompanha Alex na complicada tarefa de aceitar que no ponto de vista daquela moça, ele havia cometido um ato de abuso sexual.
Ele usa como argumentos o fato de que ela não havia explicitamente pedido para que a situação fosse interrompida, e ela por sua vez, diz que havia se sentido pressionada de forma implícita pelas ações dele, e teve a impressão que caso recusasse, haveriam consequências negativas em sua carreira.
Ambos apresentam argumentos válidos sobre seus pontos de vista, mas decidir se foi ou não uma situação de abuso foge da proposta desta reflexão. Conforme o episódio avança, Alex relembra das outras situações onde teve as mesmas atitudes com outras mulheres, e começa a se perguntar: será que eu fiz isso mais de uma vez?
Para iniciarmos a reflexão, primeiro precisamos ter noção que mesmo sem intenção, podemos sim acabar por pressionar aqueles mais fracos, nossos subordinados profissionais, aqueles que nos prestam serviços, etc, simplesmente pela posição em que estamos em determinado momento. A palavra-chave aqui é “intenção”, pois nós conhecemos Alex, e assim como a maioria de nós homens, sabemos que ele provavelmente não faria algo do tipo propositalmente.
Pensem aí, o quão difícil seria pra você leitor, receber o título de “abusador” de repente? Este é um estigma muito grande, com o qual provavelmente vai ser difícil que aprendamos a conviver. Mas só por que ele não teve intenção, não quer dizer que não deve ser responsável pelo ato de agressão que cometeu.
Esse é outro ponto de nossa reflexão: quando pensamos em homens que tem atitudes desse tipo, precisamos entender que é melhor essas pessoas pensarem em si como autores de violência, não como abusadores. A diferença é que entendemos que se uma pessoa é autora de uma história de violência, ela pode ser autora de uma história diferente, e como responsável pelo ato, escolher agir diferente.
Também precisamos pensar que além de autores de violência, muitos desses homens foram vítimas das mesmas atitudes. Nesse sentido, é fácil perceber por que alguns homens se sentem no direito de fazer o mesmo. O que precisamos lembrar é que viveremos com as consequências dos atos que temos, e independente da razão com a qual justificamos nossas atitudes, nós DEVEMOS ser responsáveis por elas.
Essa é provavelmente a parte mais difícil de aceitarmos: que independente do que fomos/somos vítimas, a partir do momento que “devolvemos na mesma moeda” precisamos aceitar que nossas ações nos acrescentam o papel de autor, além do de vítima, e um não justifica o outro.
Alex decide se responsabilizar pelo que fez escrevendo um artigo onde admite ser o responsável pelo ato abusivo da matéria de sua amiga. A consequência disso é que uma parte do público que lia sua coluna deixa de participar. Outra consequência é que sua amiga lhe agradece por fazer parte das pessoas que estão dispostas a sofrer para perseguir um objetivo.
É preciso que nós homens, ao vermos ou cometermos atos de violência não intencionalmente tenhamos medidas iguais de responsabilização e compaixão ao pensarmos nisso. Claro, não é absolutamente todo o contexto que pede compaixão, e responsabilização varia de caso a caso, mas a grande maioria dos atos de agressão são situações como a que Alex protagonizou, e nelas a intervenção com cunho educativo pode ser mais efetiva.
Temos muitas maneiras de nos responsabilizarmos caso percebamos que fomos autores de violência, o importante é que estejamos atentos às nossas atitudes, para não repetirmos nossos erros, ou pelo menos, para que erremos de forma diferente. Para as mulheres que estão lendo: a maioria dos homens com quem vocês lidam compreende as milhares de dificuldades envolvidas em negar encontros, e seria ingênuo dizer que vocês devem “só” dizer não e isso vai sempre funcionar.
No entanto, por favor lembrem-se disso: a maioria dos caras não quer cometer atos de violência, e muitos serão sim receptivos a sinais mais claros de que estão deixando vocês desconfortáveis de alguma forma. Cabe a todo mundo uma parcela da responsabilidade por como nos comunicamos e pra isso, especialmente nós homens, precisamos estar ligados ao que parecemos estar fazendo, além do que gostaríamos de fazer.
Andrey da Silva Aires é psicólogo clínico de indivíduos, famílias, casais e pós graduado em psicologia e sexualidade. Também é criador da página @andrey.aires.psicologia no Instagram e Facebook onde desenvolve um trabalho focado em abordar conceitos da psicologia de um jeito simples, muitas vezes usando a cultura pop como paralelo para nossa vida.
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