por Patrícia Atanes de Jesus Bernardinelli - CRP 06/37052
The Fall é um thriller psicológico cujo enredo se desenvolve em torno de duas personagens. Stella Gibson (Gillian Anderson), a detetive sênior e superintendente da polícia metropolitana de Belfast designada para liderar a equipe de investigadores dedicados a desvendar uma série de crimes violentos contra mulheres. E, Paul Spector (Jamie Dornan) um assassino frio, sádico e sexualmente motivado.
É importante destacar de antemão que a serie não é sobre "quem é", mas sim "porque é". Depois de uma entrada triunfal, mascarada e enluvada através de uma janela destrancada, a identidade do assassino se revela já nos primeiros minutos do primeiro episódio. Saber quem é o assassino não compromete em nada o suspense de The Fall, que busca retratar alternadamente as histórias de Stella Gibson e Paul Spector, concentrando-se em compreender tanto a personalidade de um homem comum capaz de cometer atos tão hediondos, como a sociedade imperfeita em que ele existe. Esse aspecto psicológico que envolve a série é muito interessante, ela gira em torno da compreensão do comportamento criminoso e sua motivação e não na busca por descobrir o criminoso.
O assassino Paul Spector tem como alvo mulheres profissionais que possuem características físicas semelhantes, mas também certo status social, mulheres independentes e sem algum tipo de relacionamento amoroso. Um dos grandes créditos que podemos dar a série é que ela não reduz em nenhum momento, o impulso de Spector de matar essas mulheres em uma única razão facilmente definível. Ele mantém diários no sótão de sua casa e posa suas vítimas após a morte, mas só depois de limpá-las e pintar as unhas.
Apesar de explorar muito as cenas dos atos horríveis de tortura, a serie se recusa a definir as pessoas em homens e monstros. Em vez disso, revela que os homens capazes de atos monstruosos são um produto de males sociais profundos, especificamente sugere, que são produtos de uma sociedade patriarcal em que a hostilidade, até mesmo a violência contra as mulheres e crianças é tolerada e comum.
Paul Spector, não é retratado como um sociopata solitário incapaz de sentir emoções, longe disso. O enredo nos impede de se afastar de Spector, não apenas pela beleza e atuação de Dornan, mas por entre cenas de caça e ataque as vítimas, vemos Spector beijar carinhosamente seus filhos adormecidos, dar banho, embalar seus lanches, levá-los à escola e passear com eles no parque. Em uma cena conversando com sua filha, de 8 anos, ouvimos Spector dizer a ela, “ver você crescer foi a melhor coisa que já me aconteceu.”
Em muitos momentos é complicado e perturbador assistir os episódios de The Fall, porque somos obrigados a ver Paul Spector como um ser humano, capaz de ternura e remorso, e ao mesmo tempo um monstro que tortura e violenta suas vítimas e ainda escreve suas memorias e guarda lembranças. Durante todo o desenrolar da história não nos pedem para perdoar as ações de Spector, mas quase nos imploram para entender o homem por trás do monstro.
Logo na primeira temporada, conhecemos imediatamente quem é Paul Spector. Ele é um assassino, não existe dúvida disso, porém no desenrolar da série, vemos também que ele é um profissional dedicado e empático, um marido e pai amoroso, cuja docilidade em torno de seus filhos apenas torna suas ações muito mais hediondas e assustadoras.
Na terceira temporada, Paul está sob custódia da polícia e é submetido a avaliação psiquiátrica. As provas contra ele são impressionantes, para não mencionar que ele fez uma confissão completa. Mas como ele está sofrendo de amnésia (real ou fingida), vemos um novo lado de Paul, e desenvolvemos uma intimidade diferente com ele, presenciamos sua violência ao espancar e estrangular suas vítimas e conhecemos um pouco mais sobre sua infância e como ele se vê.
Quando olhamos a história de Paul, não fica muito claro a escolha de seus alvos e quais suas motivações ao assassinar violentamente as mulheres. Poderíamos inferir que seu ódio seria voltado para os homens: como órfão, ele se mudava de casa em casa, terminando aos cuidados de um padre chamado Padre Jensen, que abusava sexualmente de crianças. Paul era um dos seus "favoritos".
Paul é, espantosamente, pai de dois filhos. Ele é atencioso e protetor das crianças. Não temos ideia do motivo de Paul só machucar adultos e não crianças. Afinal, por que uma vida seria preciosa para um assassino tão frio? Mas Paul expressa auto repulsa ao saber que uma de suas vítimas estava grávida quando ele a assassinou. Essa compaixão pode se originar de seu próprio histórico de abuso na infância, o que lhe causou danos psicológicos irreparáveis.
Por que, então, Paul direcionava sua raiva as mulheres? Por um lado, ele nunca se recuperou verdadeiramente do suicídio de sua mãe, essencialmente ela o abandonou. Observamos na terceira temporada que às vezes ele colocava as roupas de sua mãe na forma de seu corpo, o que ele fez depois com suas vítimas femininas. Ele chegou ao ponto de se vestir com roupas femininas e colocar manequins em posições submissas.
É possível que sua obsessão por perseguir e matar mulheres, e seu padrão de estrangulamento, liberação e estrangulamento de novo, decorrer de querer entender o que sua mãe experimentou quando se enforcou e também de ter a sensação de que estivesse tomando de volta o controle que nunca teve. Seus sentimentos sobre as mulheres são obviamente misóginos, mas como Rose (uma de suas vítimas) e a detetive Stella Gibson apontam, não é sobre elas. É sobre ele.
Paul admite que a dor de outras pessoas lhe traz prazer numa cena com a Babá de seus filhos, com quem tem uma relação estranha. Mas algumas ações de Paul dizem o contrário, ele trabalha como psicólogo e diante de um relato de violência sofrida por uma de suas pacientes, ele a convence a buscar proteção policial, mesmo que isso signifique trair o marido e colocando-o de volta na cadeia. A empatia de Paul pelas crianças e os abusados está em conflito direto com seu próprio comportamento criminoso. Afinal, ele não abusa de suas vítimas? Mas essa ambiguidade faz dele um personagem muito mais atraente e intrigante.
Na terceira temporada, Paul experimenta amnésia significativa, onde ele não consegue se lembrar da última década de sua vida, incluindo os assassinatos. Ele fica visivelmente chateado e perturbado quando descobre o que fez. Isso, naturalmente interfere no andamento do processo judicial e torna o trabalho da polícia mais complexo, uma vez que torna sua confissão suspeita. Stella Gibson está convencida de que ele está fingindo como um disfarce para escapar da punição, e embora isso seja provável (há momentos sutis onde Paul parece escorregar), não se é possível afirmar.
A amnésia de Paul é crível e nos leva a sentir-se manipulados em nossa própria ingenuidade e disposição de confiar que as pessoas são inerentemente boas. Paul é encantador e é assim que ele consegue enganar as pessoas, incluindo sua própria família, por anos. Em seu diário, nós aprendemos sobre o Bom e o Mau Paul, ele fala de ser um observador, possivelmente ao ponto da dissociação total, uma personalidade dividida, ele escreve poesia sobre seus crimes e até faz reflexões com base em grandes filósofos. Sabemos que ele se distrai com “projetos” para impedir de se matar. Porém precisamos lembrar que ele não começou sua carreira criminosa como o Estrangulador de Belfast até os trinta e poucos anos, antes disso estabeleceu uma carreira, se casou e criou dois filhos.
É possível que a docilidade que vemos nele enquanto experimenta a amnésia, se transforme em violência novamente com o retorno de suas memórias. O “Mau Paul” está lutando e tentando se sobrepor ao "Bom Paul" novamente. Talvez, em algum nível, ele abomina suas próprias compulsões e é por isso que ele se agrede após assistir à gravação de uma de suas vítimas, Rose, implorando por sua vida. Sua demonstração de raiva diante da avaliação de Stella a respeito dele pode revelar uma incapacidade de comunicar seu próprio sofrimento, e sendo assim, ele não odeia Stella, mas sua descrição implacável da monstruosa imagem de si mesmo.
Paul Spector é um personagem muito interessante e desafiador, poderíamos seguir o buraco do coelho por horas e só nos veríamos mais perdidos. Podemos especular sobre o que o faz funcionar, mas nunca o conhecemos verdadeiramente. De fato, entendê-lo é perceber que não o entendemos de forma alguma. A ambiguidade de seu caráter e motivos é uma prova de seu profundo desenvolvimento.
Enfim, The Fall explora os medos que as pessoas têm de mostrar seu verdadeiro eu a qualquer um, e vai além de um simples drama policial. A busca de Gibson por Spector é menos sobre a necessidade real de pegá-lo e mais sobre o processo de entendê-lo. Entrar em sua cabeça significa confrontar os aspectos mais sombrios dela mesma. Mas como The Fall sugere, esses dois estão longe de serem os únicos com medo de olhar para dentro. "Ninguém sabe o que está acontecendo na mente de outra pessoa", diz Gibson em certo momento. "E a vida seria intolerável se o fizéssemos." Para personagens ou pessoas reais, a visão pode ser assustadora demais às vezes.
O mais perturbador e assustador é olhar para Paul Spector e encontrar elementos que nos levam a pensar que ele poderia ser o “cara da casa ao lado”, afinal como diz Stella Gibson, as emoções existem em um espectro e todos nós, como o assassino, temos limites para nossa empatia. "Homens como Spector são todos humanos demais, compreensíveis demais", explica ela calmamente. "Ele não é um monstro, ele é apenas um homem."
Patrícia Atanes de Jesus é psicóloga junguiana, CRP 06/37052 com Especialização em Terapia Sistêmica Familiar e Avaliação Psicológica, além de Psicologia Jurídica. Atende Crianças, Adolescentes e Casais em consultório particular em São Bernardo do Campo/SP. Seus interesses estão voltados para relacionamentos, transtornos e síndromes diversas que atingem os adolescentes (incluindo depressão, suicídio). Sua paixão está no entendimento do funcionamento da Psique e seus simbolismos. Acompanhe seu trabalho em:
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