por psicólogo Luiz Guedes, CRP07/30195
One Punch Man é originalmente uma webtoon, um quadrinho criado de maneira independente que fez muito sucesso na internet e após conquistar o mundo foi transformado em mangá (quadrinhos japoneses) pela Shueisha, a maior editora de mangás do mundo e, posteriormente em uma série de animação que até o momento possui duas temporadas. Tudo gira em torno de um homem chamado Saitama, simplesmente o ser mais forte do universo e sua relação com o vazio existencial.
Para falar de Saitama precisamos conhecer um pouco o mundo onde ele está inserido. O mundo de One Punch Man é recheado de monstros que personificam males como a poluição, a raiva e até mesmo as máscaras que usamos e nos transformam em seres terríveis, onde as cidades estão sempre em perigo e ser herói se tornou uma profissão sindicalizada. Neste contexto Saitama era um assalariado comum e apático que após ter uma experiência extrema onde salvou uma criança de um monstro, resolve ser um herói. Ele treina muito, não é o mais habilidoso ou o mais inteligente, apenas treina por três anos sem descanso e após este período duas coisas acontecem: Saitama perde todo o seu cabelo e se torna o ser mais forte que existe.
A partir disso Saitama não possui mais desafios, todos os seus inimigos são derrotados com apenas um soco, acontecimento que dá título a obra. A vida do herói se torna vazia, ele não possui mais um objetivo além de encontrar um inimigo que lhe permita sentir a emoção de estar vivo, a adrenalina do perigo e a incerteza de poder ou não superar obstáculos. Saitama possui um poder absoluto que está acima de tudo e de todos e a maneira inicial que ele vê esse poder lhe tira o propósito.
Viktor Frankl, o criador da Logoterapia e Análise Existencial – a terapia do Sentido da Vida – diz que o que move o ser humano é uma busca de Sentido e este Sentido só pode ser realizado quando existe um fenômeno chamado noodinâmica, mas o que isso quer dizer? A noodinâmica é uma tensão necessária que nos faz buscar o movimento, ela rompe com a homeostase, o equilíbrio, possibilitando um catapultamento para que o ser humano tenha o necessário para estar em constante aprendizado, fortalecimento e aprimoramento. Saitama rompeu a noodinâmica, não existe mais uma tensão, uma distância ideal onde ele não está muito longe ou muito perto de ser o que quer. A distância ótima é necessária para que possamos estar a uma distância “segura” de quem queremos ser, partindo de quem somos. Se eu estou muito longe do objetivo acabo por ficar frustrado e julgando ser inatingível, fico apático e não me movimento, por outro lado se estou muito perto acabo por ficar relapso e pensando que o mínimo de esforço já não é mais necessário, visto que falta tão pouco. Saitama rompeu a distância ótima, ele ultrapassou até mesmo quem queria ser e se tornou apático novamente.
Estando preso a uma homeostase onde não existe tensão, Saitama acaba por perder sua potência de agir, ele não consegue ser proativo, apenas reativo. Seu humor é sempre apático e por mais que lute, por mais que se insira em meios sociais que o apreciem e por mais que atinja feitos jamais sonhados por outras pessoas ele se sente extremamente vazio, sente que ele é tão forte que já não possui um sentido para existir, que sua vida não tem mais graça, pelo menos enquanto se vê apenas por sua força física.
Saitama representa uma enorme parte da existência humana, principalmente quando observamos um mundo recheado de estímulos interessantes, de possibilidades para uma boa parte da população deste mundo e, ainda assim, nada parece preencher as pessoas. Saitama tem a visão do topo, ele chegou lá e notou que não é o poder que lhe atribui sentido, não são os prazeres que uma posição de força extrema proporciona, ele chegou lá e ainda se sente vazio. A identificação dos espectadores se dá justamente pelo paralelo traçado entre a ficção e a realidade, onde dinheiro, celulares e relações vazias apenas aumentam mais e mais o buraco em cada um de nós.
One Punch Man também é uma crítica a um social que cada dia mais nos gera vazio, que nos motiva a buscar por realizações que tem um fim em si mesmas. Tenha dinheiro para ter dinheiro. Tenha poder para ter poder. Tenha prazer para ter prazer. O dinheiro, o poder e o prazer são importantes, porém quando se tornam o fio condutor de uma existência acabam por fazer a essência humana construída a cada dia ser uma essência torta, onde corremos atrás do próprio rabo, com realizações impostas por outros e sem entender que cada um ocupa um lugar de responsabilidade no mundo.
Neste ponto entra a redescoberta de Saitama como herói para ele mesmo. Quando começou seu treinamento ao derrotar o primeiro monstro e quase ter sido morto por ele, Saitama dizia uma frase simples: “quero ser herói por hobbie”. Por mais que tivesse a ideia de salvar pessoas, achava legal a posição, interessante o prestígio e como poderia ser reconhecido, ser famoso e ter dinheiro. Quando surge como o ser supremo, seu brilho no olhar não é mais o mesmo, está apático e faz o seu “hobbie” por obrigação, agora é um herói profissional e não sente realização com aquilo. Seu ponto de virada é quando enfrenta um monstro que já derrotou inúmeros heróis, um ser das profundezas do oceano que parece invencível. Quando ele surge e o derrota com apenas um soco a população questiona a real força do monstro, diz que os outros heróis eram fracos e não se arriscavam de verdade, visto que um cara sozinho o explodiu com um soco. Saitama então abre mão de seu desejo de poder, de seu desejo de prazer pela vitória e diz a todos uma enorme mentira: Ele havia derrotado um monstro que já estaria cansado e fraco por causa dos demais heróis, abrindo mão de todo o prestigio que poderia ter.
A Logoterapia nos diz que o Sentidopode ser atingido de três formas: 1.Com valores de criação ao modificarmos o mundo; 2. Com valores de vivência tendo experiências de verdadeiro encontro com o mundo e os seres que nele vivem; 3. Com valores de atitude, quando estamos perante um sofrimento inevitável e temos que tomar uma atitude perante esse sofrimento, modificamos a nós mesmos em uma situação que não pode ser modificada, agimos perante sofrimentos inevitáveis, culpa e morte, os males que todo ser humano passará em sua vida. Todos os valores são realizados quando saímos de nós mesmos e nos voltamos para o mundo. Exatamente o que Saitama fez na situação e tenta fazer quando toma consciência da responsabilidade que tem com o mundo que o rodeia.
Saitama está em um processo de amadurecimento em relação a sua própria existência, possui o que sempre quis e isso se tornou um fardo, está em sofrimento pela falta de perspectiva. Saitama possui uma depressão exógena que o aplaca com uma força tão poderosa quanto sua força física, cabendo uma reflexão de todo o seu contexto e um processo de autoconhecimento para que ele transcenda o que lhe causa sofrimento.
Toda a obra de One Punch Man se trata de buscas: por autoconhecimento, por realizar sentidos e por ser quem de fato se é.
Em suas buscas Saitama se conhece um pouco mais, vai se rodeando de pessoas que são importantes para ele e ajudando cada uma delas com o que pode – visto que nem todos os problemas podem ser resolvidos com um poderoso soco capaz de destruir um meteoro – demonstrando a aplicação das sutilezas das relações humanas, onde ir pelo caminho mais fácil não é um caminho que vale a pena se viver. Através da sua relação com o mundo Saitama percebe ser mais do que o mais forte, ele se percebe pessoa.
Em uma história de herói onde um deles pode derrotar tudo com um soco é fácil cair no clichê, mas que história teríamos se tudo se resumisse a isso? A luta de Saitama não é física – essa ele já venceu – sua luta é para saber quem é e quais os sentidos que ele pode realizar. Quando precisa se desafiar para ajudar seu autointitulado “pupilo” Genos a crescer, ele está realizando valores de vivência, assim como quando ajuda um herói dito como o mais forte do mundo – que na verdade é uma fraude – a ver que ele pode tomar outros rumos e não viver à sombra do que esperam dele. Saitama impacta as vidas de maneira mais poderosa com suas ações direcionadas a outros seres humanos do que quando usa sua enorme força.
Quando Saitama vê uma pessoa em perigo e a ajuda, não por fama ou poder – visto que algo sempre ocorre para que ele não leve os créditos – mas sim por ter alguém que precisa de ajuda, ele realiza dois valores. Os valores de vivência por estar em contato com pessoas, afetando a elas e a si mesmo, mas também valores de criação ao modificar o mundo com o seu trabalho, se doando para que o mundo tenha algo dele, algo que só ele pode realizar naquele momento e daquela maneira. Saitama demonstra uma grande capacidade de se doar e daí vem seu heroísmo.
Por fim, os valores de atitude estão presentes a todo o momento da vida de Saitama. Ele olha diretamente para o vazio todos os dias, a todo momento e sua fase de desesperança já foi superada por uma vontade de sentido, termo utilizado por Frankl para descrever a força motivadora do ser humano. Quando Saitama está frente ao sofrimento inevitável – para ele é não ter desafios – ele se propõe a mudar sua atitude perante o que ocorre no mundo e assim ele se torna o herói mais poderoso. O seu poder vai além de sua força física, ele é capaz de ser mais do que é através da realização dos valores em contato com o mundo.
Quando Saitama toma uma decisão de mudar a si mesmo e fazer algo em relação ao que está ao seu redor ele foge do lugar comum do super-herói poderoso que resolve tudo com brutalidade e violência, ele diz ao mundo como o seu mundo ideal deveria ser. Ele segue o que diz Sartre: quando nos posicionamos perante o mundo este posicionamento reflete a nossa visão do que todos deveriam fazer, portanto é uma responsabilidade enorme. Se eu vou por um caminho digo ao mundo inteiro que este é o caminho que todos devem tomar, minhas ações devem ser congruentes com o meu discurso e o discurso em si só se concretiza nas minhas ações.
One Punch Man é uma obra com diversas camadas, ela possui violência sim, monstros são eliminados, mas mais do que isso, os próprios monstros são seres que personificam características do nosso mundo. Todos eles derrotados por um soco de um herói poderoso como nenhum outro. O soco de Saitama não representa força bruta e tampouco violência, ele representa a capacidade humana de transcender a todos estes condicionamentos, não importa quão difícil seja esse caminho e o quanto iremos sofrer para isso. Cada soco de Saitama é um posicionamento ativo perante a apatia e o vazio, uma tentativa de construção de essência humana e de uma realidade que vale a pena ser vivida, não por um, mas todos nós. Saitama é inspiração e traz à tona a capacidade mais subestimada do ser humano nos tempos de hoje e a mais rejeitada, Saitama é capaz de sofrer. Mas mais do que isso, ele é capaz de transformar esse sofrimento modificando a si próprio tendo consciência que é um ser de possibilidades e tais possibilidades são traduzidas com uma literalidade visceral: O soco mais poderoso que existe.
Luiz Guedes é Psicólogo Clínico (CRP07/30195) Pós-Graduando em Logoterapia e Análise Existencial e Pós-Graduando em Psicologia Existencial Humanista e Fenomenológica
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