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O que define uma vida? (Forever)

por Leonardo Veiga Guarnieri, CRP 07/27235


De que maneira nossas experiências nos marcam, alterando os rumos de nossas vidas? Haveria um núcleo ou uma essência de quem somos, capaz de se transformar com diferentes graus de flexibilidade, ou seríamos formados exclusivamente pelas vivências e pelas memórias que acumulamos? O que significa mudar: seria apenas ressignificar os eventos de nosso passado, elaborando questões que, anteriormente, nos traziam dificuldade e sofrimento, ou algo mais?


São perguntas complexas e com as quais nos defrontamos frequentemente na clínica. Também foram questões que Forever, série de 2018 da Amazon, suscitou em mim. Com apenas 8 episódios, é uma recomendação fácil, começando pelo elenco, que traz Maya Rudolph e Fred Armisen como protagonistas. Conhecidos por seu trabalho cômico, os dois interpretam papéis um tanto incomuns aqui. Não é que a série não tenha seus momentos engraçados, principalmente ao brincar com o contraste entre o absurdo e a mundanidade que permeiam o modelo tradicional de vida doméstica, mas seu tom é mordaz, além de ser pontuado por um ar de mistério que cerca a narrativa.


A premissa é bastante curiosa, e a história não faz questão de dar muita explicações, deixando vários enigmas em aberto. June e Oscar, juntos por mais de uma década, vivem uma rotina maçante. Discutem os mesmos assuntos, comem as mesmas refeições e até tiram férias, todo ano, no mesmo lugar. Ela é claramente infeliz, sentindo-se presa nesse casamento sufocante, enquanto ele parece não perceber nada e acreditar que está tudo bem. Quando os dois finalmente decidem fazer algo diferente e viajar para um lugar novo, Oscar sofre um acidente fatal. Um ano depois, ainda deprimida e solitária, em um processo de luto difícil por se culpar pela morte do marido, June também se torna vítima de um acidente inusitado e morre. É aí que a história começa.


Ao abrir os olhos, a primeira coisa que ela vê é Oscar, pronto para recebê-la de braços abertos no além. Embora ambos fiquem felizes com o rencontro, isso não dura muito. Como June logo descobre, a “vida após a morte” que a espera é extremamente similar àquela que ela levara. Os dois moram em uma casa em Riverside, uma comunidade pacata habitada por outros espíritos de falecidos. Eles passam seus dias tendo as mesmas conversas que tinham quando vivos, jogando os mesmos jogos e fazendo as mesmas coisas. Além disso, não podem se afastar do centro da vizinhança, onde fica um chafariz do qual parece emanar toda a energia que sustenta suas almas – o único lugar para o qual conseguem ir é a cabana no lago onde passavam suas férias todo ano e que, de alguma forma, fica nas proximidades de sua nova casa!


Não demora muito para que June comece a se sentir inquieta, frustrada e infeliz com a volta a essa rotina. Ela tenta falar sobre o assunto com Oscar, mas tem dificuldades em confrontá-lo quando ele demonstra não ter problema nenhum em passar o resto da eternidade na mesma existência doméstica que os dois levavam anteriormente. A coisa toda só muda com a chegada de uma nova vizinha, Kase. Após viver décadas de tédio, em um trabalho burocrático que odiava, Kase se recusa a aceitar a mesmice de Riverside e o destino enfadonho ao qual eles foram condenados, decidindo-se a mostrar para June que não elas não têm que fazê-lo ou que respeitar as mesmas regras que seguiam durante suas vidas.


Eventualmente, as duas descobrem que há uma saída: um outro lugar, para as almas insatisfeitas com a pequena comunidade. June decide, então, partir com Kase e deixar Oscar para trás. Após uma longa jornada, elas chegam em uma enorme mansão à beira da praia – Oceanside. Lá, todos passam seus dias de um jeito bem diferente: em uma grande festa, regada à álcool, jazz, karaokê, fogueiras na areia e tudo mais que tiverem vontade de fazer, incluindo se jogar na frente de carros, atear fogo em si mesmos e outros experimentos desse tipo – já que estão mortos e não podem mais se machucar.


De início, o lugar parece um paraíso, especialmente para June, que vê aí uma saída para a infelicidade que marcara seus anos de casada. Aos poucos, porém, as festas e o ânimo inesgotável dos novos vizinhos parecem cansá-la. Além disso, há um grande porém em passar a eternidade em Oceanside: com o tempo, todos os habitantes se esquecem de tudo sobre as vidas que levaram e sobre quem eram. Após apenas alguns dias lá, June e Kase já começam a ter dificuldades em lembrar de certas coisas, incluindo o emprego tão odiado dessa. Tudo isso, somado à chegada de Oscar à praia, leva June a repensar suas escolhas.


No fim das contas, ela decide não ficar, mas também rejeita a ideia de voltar a Riverside. Nenhuma das duas alternativas lhe parece tão boa assim. Essa significaria se resignar a repetir a mesma vida insuportável, ficando presa às escolhas que fizera no passado e sem nenhum espaço para o novo e a mudança. Aquela, porém, levaria a uma existência excessivamente dinâmica, de transformações constantes, que lhe permitiria esquecer todos os sofrimentos e mágoas que carregara até aquele ponto, mas que, ao levar suas memórias, também apagaria todas suas referências sobre si própria, sobre o caminho que percorrera e sobre quem havia sido. Como escolher entre uma e outra?


O dilema da protagonista nos dá margem para pensarmos em diversos temas, como o da identidade e da constituição subjetiva, além da maneira na qual somos influenciados por nossas vivências e por como as elaboramos, bem como o que esperamos de um processo terapêutico. Embora as demandas que recebemos de pacientes sejam, frequentemente, no sentido de buscar um apagamento de algo que lhes causa sofrimento, essa também pode ser uma via perigosa.


Alguns tipos de tratamento em voga nos dias de hoje pregam que podemos simplesmente eliminar, reajustar ou modificar os padrões que regem as formas como nos relacionamos com os outros, com o mundo ao nosso redor e mesmo conosco. Corremos o risco, assim, de cairmos em uma concepção de clínica orientada por uma cartilha ou receita de bolo que nos proveria com uma fórmula universal e suficiente para que todos encontrassem a saúde, a felicidade ou mesmo o alívio de um sofrimento que se mostra insuportável.


Um dos problemas com essa visão é que ela ignora a inexistência de um caminho único ou uma escolha simples quando nos vemos diante de uma encruzilhada similar àquela em que June chega. Na série, ela consegue encontrar um meio termo, ou ao menos embarcar na construção de um caminho que seja o seu, mesmo que não hajam garantias, mesmo sem saber aonde ele vai levá-la – e, no fim, é exatamente isso que fazemos quando nos propomos a iniciar uma terapia.


Leonardo Veiga Guarnieri é historiador e psicólogo, CRP 07/27235. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisa o tema da escrita e suas relações com a clínica. Atua na clínica particular, a partir do referencial psicanalítico, em Porto Alegre/RS. Contato: leonardovguarnieri@gmail.com

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