por Patrícia Atanes de Jesus – CRP 06/37052
Há algo em "Você" que dificulta olhar para outra direção, ao mesmo tempo em que força os espectadores a se sentirem realmente desconfortáveis por pensar em "torcer por" o protagonista bonito, encantador digno de um interesse amoroso, porém um homem obsessivo, controlador, violento e mortal.
A segunda temporada de “Você” torna ainda mais difícil digerir esses fatos, pois Joe Goldberg (Penn Badgley) se aprofunda na negação de que seja um cara mau e o vilão de sua própria história. Em sua narrativa interna, Joe se mostre um cara legal e que não é verdadeiramente um assassino (apesar do número de assassinatos que ele cometeu), porém são nesses momentos de autodefesa que o espelho focado em Joe é maior, mesmo que ele se recuse a olhar. A segunda temporada força Joe a realmente olhar para si mesmo e se colocar em uma sala metafórica de espelhos infinitos.
Quando vimos Joe pela última vez, seu coração estava tragicamente quebrado e seu passado o alcançou na forma da ex-namorada há muito perdida Candace (Ambyr Childers), uma mulher agora empenhada em lhe ensinar uma lição. Na segunda temporada o encontramos fugindo de Candace, deixando Nova York e seguindo em direção a seu próprio inferno: Los Angeles.
Joe Goldberg agora apelidado de "Will Bettelheim" em sua tentativa de se esconder de um passado sombrio que insistia em ressurgir precisa se forçar a viver como um indivíduo totalmente invisível. Acaba conhecendo e se apaixonando por uma mulher incrível chamada, por obra ou “brincadeira” do destino - Love (Victoria Pedretti) - uma chef que chama a atenção de Joe em um momento que ele afirma querer fazer qualquer coisa, exceto cair nos mesmos padrões de sua vida em Nova York.
Os interesses amorosos de Joe Goldberg, Beck e Love são claramente arquétipos para ele, a diferença é que Beck foi escrita de uma maneira intencionalmente em branco, para ir se adaptando e moldando as expectativas criadas por Joe. Já Love é uma personagem tão desenvolvida e direta que não há dúvidas sobre quem ela é e o que ela quer. Ao contrário de Beck, Love não está procurando ou se questionando sobre o que deseja, ela sabe. Love é clara em suas intenções e, apesar dos instintos de Joe, ela não "precisa" de ser "salva". Por mais observador que Joe seja, muitas vezes ele é genuinamente surpreendido por Love, porque ela não é fácil de prever, nem mesmo em relação a seu círculo de amizades. Essa nova dinâmica de relacionamento afeta a confiança de Joe e o deixe totalmente desestabilizado por toda a trama ao longo da 2ª temporada.
Uma das coisas não intencionais, porém muito inteligente que a primeira temporada fez foi não diagnosticar Joe, mesmo quando houve uma oportunidade de fazê-lo com o Dr. Nicky (John Stamos). Rotular Joe com uma doença mental específica abriria uma caixa de questões psicológicas e colocaria o personagem em posição de alguém que pudesse ser consertado.
A segunda temporada vai mais fundo na história de Joe, antes de ele entrar no sistema de adoção e acabar com o abusivo Sr. Mooney, cavando a raiz de seu complexo salvador e problemas com a mamãe. Enquanto "você" consegue apresentar esses flashbacks sem que eles sirvam de desculpa para o comportamento dele, eles também são a parte mais estranha da segunda temporada. Durante toda a trama, flashbacks da infância violenta de Joe revelaram como ele testemunhou o abuso de sua mãe nas mãos do marido e como ele acabou matando o homem para salvá-la. A natureza desbotada desses flashbacks os torna inicialmente como clichês visuais bruscos e, poderiam ser uma maneira de absolver Joe e torná-lo mais compreensivo. Porém no final da temporada, eles prescrevem uma razão para a sua vilania, mas não com o intuito de absolvê-lo, são um local para testemunhar as maneiras pelas quais os abusos acontecem ao longo de gerações.
A segunda temporada de “Você”, da mesma forma que na temporada anterior, se desenrola como um circuito enfurecido, e totalmente envolvente. Houveram questões que se agitaram o tempo todo: a insistência de Joe em usar um boné de beisebol é como vestir uma capa de invisibilidade; a precocidade irritante da irmã mais nova de Delilah, Ellie (Jenna Ortega); e, claro, a quase perfeita perfeição de Love. Mas com a revelação de que Love é tão assassina e desequilibrada pelos traumas da vida familiar quanto Joe, “você” reformula a compreensão desta temporada e de seus dois personagens mais importantes, revelando a corrosividade do desejo que tudo consome e ressalta que temos escolhas quando se trata das armadilhas da nossa vida familiar: as repetiremos ou as reverteremos inteiramente?
Há um olhar que se instala no rosto de Joe Goldberg no final da segunda temporada que chama muito atenção. Longe está a ameaça emotiva com a qual ele normalmente navega no mundo, em seu lugar, há uma confusão inquietante, perturbadora e abatida quando Joe para e ouve sua grande paixão, Love Quinn, enquanto ela cuidadosamente exalta sua perturbação míope e os assassinatos que cometeu incluindo o da pobre Dalilah Alves (Carmela Zumbado). Em essência, neste momento, a garota dos seus sonhos se torna um pesadelo.
O que Joe procurava em Love era um vaso (deposito), o tipo de mulher com quem ele podia mapear suas necessidades e desejos, absolvendo-o da escuridão que ele escolhe não enfrentar. O que ele encontra é um espelho que reflete tudo o que ele não quer ver em si mesmo: sua propensão a uma grande violência, a escuridão iminente dentro dele e os horrores de sua infância. Joe pode não se considerar abusivo, mas de que outra forma você pode descrever um homem que persegue, manipula e até mata mulheres quando elas não se encaixam no romance que ele procura escrever?
Há uma faixa do penúltimo episódio em que parece que Joe finalmente está entrando em contato com a realidade do seu “Eu” depois que Candace o tranca em sua própria gaiola e planeja chamar a polícia por seus crimes. Que tipo de homem faria isso?, ele pensa consigo mesmo. Candace esteve certa o tempo todo? Acabei de me recusar a encarar quem realmente sou? Porém essas reflexões são interrompidas pelas cenas seguintes com as reações e confissões de Love sobre atitudes tomadas para “salvar” o relacionamento das ameaças. Ao saber de tudo que Love fez, Joe pôde fingir (sentir) que é um bom homem que mata apenas pelos motivos certos, não um sociopata com pouca autoconsciência. Aceitar as ações de Love seria aceitar quem ele realmente é. Ao descrever seu relacionamento com Love como uma prisão nos momentos finais da temporada, Joe revela sua incapacidade de se enfrentar.
Patrícia Atanes de Jesus é psicóloga junguiana, CRP 06/37052 com Especialização em Terapia Sistêmica Familiar e Avaliação Psicológica, além de Psicologia Jurídica. Atende Crianças, Adolescentes e Casais em consultório particular em São Bernardo do Campo/SP. Seus interesses estão voltados para relacionamentos, transtornos e síndromes diversas que atingem os adolescentes (incluindo depressão, suicídio). Sua paixão está no entendimento do funcionamento da Psique e seus simbolismos. Acompanhe seu trabalho em:
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