Por Carolina Luz de Souza (CRP 06/87499)
Atenção: este texto contém spoilers!
Aviso de gatilho: este texto contém linguagem de violência familiar e automutilação.
Hoje escrevo sobre Objetos Cortantes, série que foi ao ar pela HBO, em 2018, baseada na obra de mesmo nome de Gillian Flynn e que conta como são as relações de três gerações de mulheres de uma mesma família: Adora Crellin (Patricia Clarkson), a mãe; Camille Preaker (Amy Adams), a filha mais velha; e Amma Crellin (Eliza Scanlen), filha mais nova de Adora e meia-irmã de Camille. A série conta sua história em apenas 8 episódios que são mais do que suficientes para trazer desconforto e reflexão.
Já no início do primeiro episódio, vemos Camille bastante fragilizada após uma tentativa de suicídio. Jornalista, ela trabalha em um pequeno jornal e escreve de forma medíocre, equilibrando-se precariamente entre o alcoolismo e sua frágil saúde mental.
Para tentar animá-la, seu chefe e mentor a envia à sua cidade natal, Wind Gap, para investigar o homicídio de uma menina. Mas, se a intenção era aproximá-la da família para que pudesse receber acolhimento e amparo, logo veremos que o tiro sairá pela culatra.
O que se desenrola é a apresentação de uma relação extremamente perturbada que tem raízes muito profundas na ancestralidade daquela família. O que descobrimos ao longo dos episódios é que não há possibilidade de amor entre os Crellins.
Adora, a mãe, é bela e apresenta ao mundo uma persona angelical, quase sem defeitos. Mas sabemos que quanto maior a simulação de luz, tanto mais escura a sombra. A figura perfeita do dia esconde um monstro dominador e narcisista que só se mostra no escuro daquela residência divina: Adora tortura as filhas. Camille, a mais velha, foi a mais torturada. Sempre rebelde, nunca deixou que a mãe “cuidasse” dela e só por isso continuou viva, embora emocionalmente destruída. Amma é igualmente dividida: para a mãe, é uma menininha infantil e egocêntrica que se deixa ser cuidada e manipulada; fora de casa, deixa que a violência sofrida seja usada contra outras meninas tão frágeis e inocentes quanto ela.
A história dessas mulheres mostra um sofrimento atroz e transgeracional (vivido e transmitido entre gerações): a falta de amor, acolhimento e espelhamento materno. Sabemos pela história de Adora que sua mãe era extremamente crítica com ela, que a tratava como um objeto, que não demonstrava por ela nenhum sentimento de amor. Crescendo sem referência nenhuma de apego materno, sentindo-se privada do amor e da atenção que tão profundamente necessitava, Adora desenvolve um mecanismo perverso para consegui-los: usa as filhas como objetos de amor. A relação hierárquica normal entre mãe e filhas se inverte: a mãe não está disponível para oferecer amor e cuidados. Ela usa as filhas para receber esse amor e cuidados que não teve. No caso dessa mãe, ela presta “cuidados” excessivos às filhas, drogando-as e provocando doenças intencionalmente para atrair a atenção de médicos e vizinhos. Essa é sua única forma de amar. Só pode cuidar se a filha for “boazinha” e se entregar passivamente aos cuidados mortais da mãe.
Com esse tratamento, acabou levando à morte sua outra filha, Marian, figura de apego central para Camille. Como dito anteriormente, Camille não se deixou dominar completamente pela mãe. Não aceitava os “cuidados” fornecidos e, por isso, continuou viva. Mas, após a morte da irmã, começou a apresentar sinais de sofrimento extremo. Talvez porque, no fundo, sempre soube da verdade da falta de amor da mãe e não conseguia viver com esse conflito.
Para uma criança, os pais são como deuses: todo-poderosos e responsáveis pela vida e pela morte. Não ser amado significa perigo de morrer, já que a criança depende totalmente dos pais para sua sobrevivência. Camille sabe que a mãe não a ama e, por isso, faz a única coisa que pode fazer diante disso: culpar-se. Para a psique a culpa tem um papel importante, porque ela traz consigo uma possibilidade de reparação. A culpa pressupõe que algo foi feito de errado e algo pode ser feito para consertar. Nada é mais aterrorizante para o ego do que a impotência.
Diante do conflito insuportável de saber-se não amada e de saber, inconscientemente, que a mãe era incapaz de amar (o que resultou na morte da irmã), Camille utiliza os recursos que tem para lidar com o sofrimento e sobreviver. Ela se autolesiona, escrevendo palavras por todo o corpo com objetos cortantes (daí o nome da série). Ao longo de toda uma vida de crises e tentativas de sobreviver a esse vazio interior insuportável, só há um único lugar em todo o seu corpo que não contém uma palavra escrita e cicatrizada. Seu corpo literalmente conta a história de seu sofrimento. Uma história que ela nunca foi capaz de contar para alguém ou para si mesma.
Ao encontrar a irmã adolescente que não via há 8 anos, Camille percebe a história se repetindo. Amma é tratada como pura e inocente e deixa-se cuidar passivamente pela mãe. Ela entende que esse cuidado mortal é a única forma de amor que irá receber. Mais do que Camille, ela está ciente das cláusulas desse contrato e as aceita resignadamente. Porém, quando percebe que a mãe passa a se interessar genuinamente por outra menina, enfurece-se. Então Adora é capaz de ver e ter afeto por alguém sem tentar controlá-la? Amma então toma violentamente a vida de sua rival. A mãe deve “amar” apenas a ela, que está cumprindo tão diligentemente as cláusulas do contrato materno doente.
Adora e Amma lesam o outro pela falta de amor que sofreram; Camille focaliza esse impulso destrutivo contra si própria, numa forma desesperada de quebrar o ciclo de violência. No livro “Criando Meninas” o autor, Steve Biddulph, faz uma analogia entre a relação mãe-filha e as matryoshkas, famosas bonecas russas que contém dentro de si uma boneca menor e assim por diante. Cada mulher nasce de uma outra e isso se repete pelas gerações. Muito das dores, sonhos e disfunções de nossas antepassadas vivem em nós sem que nos demos conta. Não raro, vivemos a vida de nossos ancestrais mais do que a nossa.
Na Psicologia Analítica criada pelo psiquiatra suíço Carl Jung, entendemos que essas problemáticas transgeracionais causam traumas que constituem complexos.
A causa mais comum da formação dos complexos é um conflito moral no qual o indivíduo se vê diante de uma escolha que não pode abarcar a totalidade humana. Aquilo que é considerado não compatível com o ego é reprimido e forma complexos. Além disso, traumas e choques emocionais nos quais uma parte da psique é arrancada e reprimida também formam complexos.
Diz Jung:
“Tão profundas são as influências do complexo que podem comprometer o funcionamento psíquico e impedir a filha de formar uma identidade própria. Ficar presa neste complexo pode trazer a repetição de esquemas básicos familiares na relação mãe-filha (JUNG, 2007 a).”
O complexo familiar da trama de Objetos cortantes está relacionado com a incapacidade de amar de uma mãe que também não foi amada e não aprendeu a dar afeto às suas filhas. Ela encontra apenas na violência uma forma de ter contato físico com as meninas e essa violência é mascarada como cuidado.
Muitas mulheres levam anos acreditando serem cuidadas e amadas por suas mães, quando, na verdade, estavam sofrendo algum tipo de violência narcísica, na maioria das vezes não tão grave quanto a apresentada aqui. Mas a incapacidade materna de amar pode aparecer de muitas formas: seja em uma relação mais fria e sem carinho, seja na depreciação e violência psicológica e verbal, ou na inversão de papéis (quando a mãe exige da filha amor e cuidados e sobrecarrega emocionalmente a criança).
Seja de que forma for, essa situação gera muitos conflitos e dores emocionais difíceis de identificar. Alguém que tenha passado por esse tipo de situação em que a violência era velada, muitas vezes não entende porque se sente tão vazio e angustiado ou de onde vêm os sentimentos depressivos e ansiosos. Muitos se culpam por terem “tudo para serem felizes”, virem de lares aparentemente normais e carinhosos e não terem sofrido uma violência escancarada que pudessem identificar como causa dos seus sentimentos vagos desesperados.
O que precisamos entender é que não é necessário ter uma mãe monstruosa como Adora para sofrer com a falta de amor. Se os pais ou cuidadores, por qualquer motivo, não estiverem disponíveis para a criança, não funcionarem como um espelho e como um porto físico e emocional seguro, podem haver consequências emocionais sérias.
O inconsciente sempre tem sua forma de sinalizar que algo está fora de lugar, fora de ordem. Por mais que não lembremos ou não queremos encarar nossas dores, elas estão bem vivas em nossa psique e reaparecem, seja em forma de emoções difíceis, comportamentos destrutivos (violência, auto lesão, vícios) ou sintomas físicos.
Camille passou a vida tentando fugir de lidar com suas dores, mas seu corpo sabia a verdade. Ao ver Amma como um espelho do que aconteceu com ela e a irmã, pôde finalmente encarar a realidade dolorosa de sua infância e se abrir para o verdadeiro cuidado de pessoas que realmente podiam amá-la (seu chefe e a esposa dele).
O que ela descobriu é que fugir de nossas dores é mais doloroso do que encará-las. E, ao fazer isso, muitas vezes precisamos da ajuda amorosa de familiares, amigos, ou do terapeuta.
Carolina Luz de Souza é psicóloga junguiana, mestre em Psicologia Clínica e Especializada em Terapias corporais e artísticas. Trabalha com o desenvolvimento feminino e acompanhamento emocional do pré-natal e puerpério. Realiza atendimento a adultos, adolescentes e crianças na cidade de Campinas e online para todo o Brasil.
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