por Andrey da Silva Aires - CRP 07/33087
A série documental Músculos e Confusão conta a história de um programa Norte Americano chamado Gladiadores Americanos (American Gladiators), que para quem não sabe, pode ser definido como uma forma de olimpíadas do Faustão com um tanto mais de agressividade e com pessoas mais musculosas envolvidas. A série foi um fenômeno nos USA no início dos anos 90, e seus protagonistas, os gladiadores americanos, se tornaram celebridades de um “esporte” que somente era praticado no programa, recebendo fama e adoração digna de grandes astros da NBA e do futebol americano.
A série começou a ser concebida no final dos 80, no auge da fama das grandes estrelas de ação como Sylvester Stallone, Jean-Claude Van Damme e claro, Arnold Schwarzenegger. Os Gladiadores, homens e mulheres jovens na casa dos 20 anos, todos tinham um físico muito desenvolvido, repletos de músculos e representando na sua época, visualmente o que hoje em dia é o físico dos atores e atrizes dos filmes de super-herói, ou seja, aquele ideal corporal de poder, que servia para distancia-los do homem e da mulher padrão, afinal eles são gladiadores.
A série aborda entre outros assuntos, o que era preciso para que os gladiadores mantivessem não somente seu padrão estético, mas também seu padrão de performance, pois as competições do programa eram fisicamente taxativas e para todos os efeitos, eles eram mais atletas do que atores, em termos de necessidades que seu trabalho lhes impunha. Os anos 80 tem a alcunha de terem sido o “auge dos esteroides” (eu discordo, mas mais sobre isso depois) devido a exposição de super pessoas nas mais variadas formas de mídia da época, e os gladiadores usavam sim esteroides, a série afirma isso claramente, e que bom! Esse é um tópico sensível de ser abordado, pois, suponhamos que um dia The Rock em uma entrevista revele quais anabolizantes ele utiliza, qual seu ciclo, entre outras coisas pertinentes ao uso, certamente do dia para a noite dobrariam o número de pessoas a fazerem o uso de substâncias anabólicas (e quase sempre de maneira indevida).
Eu preciso ser claro com uma coisa: esse texto não tem a finalidade de demonizar o “suco”, também frequento academias, amo essas galhofas de ação dos anos 80 e admiro gente musculosa, o que eu gostaria de iniciar é uma discussão franca sobre quais as consequências disso. Consequências sendo a palavra chave desse texto, por que ela é neutra: uma consequência desejada do uso de anabolizantes é o aumento da massa muscular, mas e o que mais? Vamos conhecer um pouco sobre a ciência envolvida no processo de tomar bomba pra podermos ter decisões mais bem informadas sobre usar ou não as “paradinhas”.
Em geral, as intenções mais comuns ao se usar anabolizantes de qualquer espécie são o aumento da massa muscular e a diminuição de gordura corporal, e é importante definirmos já no começo da conversa que sim, eles possivelmente vão produzir estes efeitos ao serem utilizados. Claro, não basta tomar os “danones” e do dia para a noite você vai ficar parecendo o Thor, ao mesmo tempo que se utilizam esses recursos, para maximizar seus efeitos “positivos” é necessário que a pessoa tenha uma rotina de treino bem-feita coisa que a maioria de nós não dispõe, por que não treinamos com personal trainers (ver vídeos no youtube ajuda, mas não é o suficiente) ou temos acesso a uma alimentação das mais regradas/caras. Então mesmo ao utilizarmos esses recursos ergogênicos, sua eficiência no indivíduo médio já tem limitações.
Também aproveitando esse espaço, deixa eu resolver um mito aqui: o que vocês pensam que acontece conosco ao usarmos anabolizantes, nós viramos o Hulk ou o Wolverine? Se você respondeu “Hulk”, sinto muito, esse não é o caso. A razão disso é que esteroides NÃO AUMENTAM nossa massa muscular, eles aceleram o processo regenerativo do nosso corpo (e musculação é o processo de danificar nossas fibras musculares para que elas se regenerem de forma a não serem feridas pela mesma carga, ocasionando aumento do tamanho delas). Como consequência de nos regenerarmos mais rapidamente a pessoa recebe o efeito do crescimento muscular mais depressa que atletas naturais, mas isso ocasiona a necessidade de cada vez maiores níveis de treinamento para continuar ocorrendo, ou seja, o resultado vem mais rápido e para além do esperado naturalmente, mas o nível de esforço e tempo investidos também precisam aumentar para que os efeitos desejados ocorram.
Os efeitos desejados tendem a ocorrer mesmo sem um aumento de trabalho ou de alimentação, mas em menor intensidade do que caso haja essas mudanças ao mesmo tempo. O grande problema é que os efeitos indesejados ocorrem independentemente da alimentação, qualidade de treino e outros fatores, sendo os mais comuns o engrossamento da voz, o crescimento de pelos mais grossos e aumento do clitóris em mulheres e a calvície, acne e hipogonadismo nos homens, além é claro, de comumente ocasionarem efeitos psicológicos (comumente a agressividade exacerbada) em ambos os sexos. Os “venenos” podem levar a severos efeitos negativos caso não haja acompanhamento adequado ao cessar o uso, mesmo que por períodos pré-definidos de tempo. É importante que fique claro que você não escolhe ter feitos colaterais indesejados os não, é sempre uma roleta genética para saber quais você vai vivenciar e qual a intensidade, isso sendo é claro, influenciado pela quantidade de anabolizantes utilizados por cada um.
Anteriormente falamos sobre a consideração de que os anos 80 foram a época de “ouro” do uso de esteroides, mas pessoalmente, eu diria que nós estamos nela atualmente. “Ouro” nesse contexto está ligado ao valor percebido pelas pessoas no uso de substâncias anabólicas, que atualmente devido a fatores como a popularidade dos filmes de herói e principalmente as redes sociais, se torna cada vez maior. É crescente o número de influencers digitais cuja fama se baseia em tomarem bomba, fazerem piadas e irem para a academia. Sendo que para mim enquanto profissional da saúde, o mais alarmante é que essas pessoas estão cada vez mais jovens. Aqui vai mais uma lição de biologia: todo mundo teve aula sobre a puberdade e como durante ela nossos níveis hormonais em ambos os sexos aumentam drasticamente, e isso ocasiona mudanças corporais severas, mas o que não costuma ficar muito claro é que após seu termino por volta dos 18, até por volta dos 30 anos, ainda HÁ aumento natural da testosterona em homens e mulheres, em velocidade muito menor do que na puberdade, mas ainda presente.
Esse aumento ocasionado pelo envelhecimento está ligado à efetividade do uso da testosterona pelo corpo, ou seja, nosso corpo tem tanto do hormônio que precisa “aprender” a usá-lo (esse processo é auxiliado fortemente pela pratica de exercício físico). O que acontece quando um jovem de 20 e poucos anos começa a utilizar esteroides é um processo de envelhecimento interno precoce para que possamos de fato ter “benefícios” com o uso, aí entram problemas como a calvície por ex, comumente um problema de pessoas mais velhas. Se você envelhece internamente 10-15 anos ao usar bomba com 22 é ótimo porque com 30 você tá muito bem, fortão, libido nas alturas, mas um dia você vai ter 30, com corpo de 40, depois vai ter 40 com corpo de 50 e assim por diante.
A resposta então se torna então utilizar ainda mais produtos para contrabalancear os efeitos negativos, o que como já estabelecemos, ocasiona efeitos colaterais. Infelizmente, o caminho mais adequado em termos de saúde para o jovem é treinar natural e consistentemente até perto dos 40 anos, onde então pode-se considerar o uso de forma mais leve com a consciência de que os efeitos colaterais serão menos intensos devido à idade. Eu digo infelizmente porque o jovem em geral não é conhecido pela sua paciência para esperar, e ver alguém de 20 e poucos anos com um corpo que parece photoshop no Instagram definitivamente não ajuda.
Outro ponto a ser discutido é o porquê? A troco de que você quer utilizar esteroides e por consequência, correr todos os riscos mencionados acima? A vida que você vive necessita desse tipo de coisa? Essa é uma resposta que cada um de nós vai precisar chegar por nós mesmos, pois se você tem uns 20 e poucos e está lendo isso, eu gostaria que você pensasse longamente sobre os porquês de você fazer tanta questão de ter um corpo daqueles tão rápido (por que é possível chegar a lugares parecidos com paciência e disciplina), ao passo que se você tem 40 e poucos lendo isso e por alguma razão sempre teve preconceitos com o tópico, pode tranquilamente visitar um médico e pedir auxílio com medidas como a TRT (Terapia de Reposição de Testosterona), pois se ele determinar que você precisa, certamente terá muitos benefícios.
Quando os gladiadores americanos utilizam dos “danones” tinham muitas questões de performance envolvidas (certamente haviam questões de imagem também), que faziam com que eles tivessem papel em seu desempenho físico no esporte em que trabalhavam. Mas se você for como eu, alguém que não trabalha com um esporte em que é permitido o uso de bomba e simplesmente tem o exercício físico como um hobbie, é mais provável que “performance” se refira a desempenharmos um papel na sociedade, uma atuação que define como queremos ser vistos pelos outros e nossa aparência física é uma das principais formas de fazermos isso.
Todos performamos, não existe não fazermos isso, seja com nosso shape, nossa escolha de vestimenta, com quem andamos, etc, mas é importante questionarmos o que as performances que escolhemos expressam sobre nós mesmos, e ainda mais, precisamos considerar: essa performance que eu quero incorporar vale a minha saúde? Vale a possibilidade de problemas de saúde no presente e no futuro? Como psicólogo, gostaria que todo mundo pense sobre essas coisas, embora talvez eu não concorde com as escolhas individuais de cada um, grande coisa, eu não sou dono da verdade, mas meu papel é o de proporcionar reflexão.
Músculos e Confusão é uma série absolutamente incrível se você, assim como eu, gosta dessa cultura de super músculos e ama ver um filme bem datado dos anos 80, e eu fico feliz que no meio dessa loucura que eu adoro sejam abordados temas que foram tão pertinentes nos anos 90 e que hoje em dia são ainda presentes na vida das pessoas. Esteroides antigamente tinham tantos problemas e benefícios quanto hoje, mas eram praticamente restritos ao mundo do esporte e da academia, sendo que atualmente, basta que qualquer pessoa abra uma rede social para ver apenas (caso o deus do algoritmo queira) pessoas que definitivamente usam o “suco” e afirmam não usar (o que é todo um outro problema que eu não vou abordar nesta discussão).
Se você optar por fazer uso de recursos ergogênicos, pode ter praticante certeza que isso ocasionará o aumento dos seus músculos, mas também tenha certeza que você pode possivelmente estar se envolvendo em um mundo de confusões. Escolha com consciência.
Andrey da Silva Aires é psicólogo clínico de indivíduos, famílias, casais, especialista em psicologia e sexualidade e mestre em psicologia. Também é criador da página @andrey.aires.psicologia no Instagram e Facebook onde desenvolve um trabalho focado em abordar conceitos da psicologia de um jeito simples, muitas vezes usando a cultura pop como paralelo para nossa vida.
Comments