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Dark: como o trauma e o desejo moldam nossas vidas

Atualizado: 4 de set. de 2020

Por Psicóloga Carolina Luz, CRP 06/87499




"O homem é livre para fazer o que quer, mas não para querer o que quer.”

Arthur Schopenhauer



A série Dark, exibida pela Netflix, chegou ao seu final recentemente em sua terceira temporada. Já falei sobre ela por aqui, trazendo conceitos relacionados, como inconsciente e trauma transgeracional. Na análise a seguir, trarei vários acontecimentos da trama, especialmente da última temporada. Então, se você ainda não assistiu a série, sugiro que veja primeiro e leia depois de assistir.


Em seu terceiro e último ciclo, a série nos presenteia com um fechamento magistral para os intrincados nós que envolvem a vida dos personagens em vários tempos e mundos diferentes.


Dark traz uma trama de suspense que prende o espectador, apresentando um entrelaçamento de vidas e conexões temporais que podem explodir a cabeça. Em Dark, o tempo é cíclico. Dessa forma, acontecimentos do passado podem influenciar o presente e o futuro, mas o futuro também influencia o passado, fechando o ciclo como a imagem muito falada na série da cobra que morde o próprio rabo (uroboros).


Na pequena cidade alemã de Winden, um apocalipse irá ocorrer e arrebatar a vida de quase todos os seus moradores. Jonas Kahnwald (Louis Hofmann), será castigado pelo sofrimento de experienciar a morte do pai, Michael (Sebastian Rudolph), e também de sua amada, Martha (Lisa Vicari). Atormentado pela perda, ele fará absolutamente tudo o que pode para consertar as coisas e impedir que as mortes e o apocalipse aconteçam. E esse desejo ardente movido pela dor incomensurável da perda coloca em ação todo o sofrimento que se seguirá e levará a que o ciclo de dor seja revivido vezes sem conta. O que já aconteceu não poderá deixar de acontecer. A vida anterior de inocência não poderá ser recuperada. Ficou perdida no tempo.


O Tempo em Dark é um personagem por si só. Adam (Dietrich Hollinderbäumer) avisa ao inocente Jonas: Deus é o próprio tempo que tudo devora e tudo destrói. Na mesma medida, no tempo é que tudo que se foi ainda existe. Somos peões em suas mãos.


O que Adam busca é justamente livrar-se do Tempo. Apagá-lo e viver em um mundo onde ele não existe. Um mundo sem dor, perda ou sofrimento. Um mundo sem Tempo. Para Adam, esse é o Paraíso. Adam deseja a escuridão, o nada. O que ele busca é o tempo antes do tempo, a escuridão do inconsciente em que residem todas as possibilidades. A semente que não nasceu, o começo que não teve início. Freud cunhou o termo Pulsão de Morte como uma busca por reduzir todas as tensões e conflitos e voltar a um estágio inorgânico. É uma força que trabalha contra a vida e o crescimento e que busca a imobilidade e o fim dos desejos.


No Budismo, a meta do desenvolvimento é o atingimento do Nirvana, estado de fim dos desejos. Nesse estágio, o sujeito entende que os acontecimentos, sentimentos e pensamentos não são ruins ou bons, apenas são. Liberto de todo o desejo por buscar sentimentos bons e evitar os ruins, ele pode apenas viver com o que é. Chegar a esse nível de aceitação parece impossível para os personagens de Dark.


Como diz Adam à Jonas:


“O homem é uma criatura estranha. Todas as suas ações são motivadas pelo desejo, seu caráter é forjado pela dor. Por mais que ele tente suprimir a dor, suprimir o desejo, ele não pode se libertar da escravidão eterna de seus sentimentos. Enquanto durar a tempestade dentro dele, não conseguirá encontrar a paz. Nem na vida, nem na morte. E assim ele fará, todos os dias o que for necessário. A dor é seu navio, o desejo é a sua bússola. E só disso o homem é capaz.”


O desejo, o amor e a dor são a bússola que guiam os habitantes de Winden. É o amor imenso e a dor incomensurável da perda que acendem o desejo de mudar a história e retornar ao mundo de antes. As famílias Kahnwald, Nielsen, Tiedemann e Doppler conhecem muito bem esses sentimentos. As quatro famílias passaram por traumas e perdas irreparáveis ao longo de muitas gerações. No desenrolar da série, entendemos que esses acontecimentos foram causados, em grande parte, por sua tentativa desenfreada de evitá-los.


Dark nos coloca diante de um questionamento filosófico e psicológico aterrador: o quanto nosso desejo de fazer o bem pode nos levar ao caminho oposto? Como nas palavras de Adam, o desejo é uma tempestade ruidosa dentro de cada personagem em Dark. Ele os levará a cometer todo tipo de atrocidade em nome do amor e do “bem maior”. Matar, enganar, manipular. Os fins justificam os meios se podem trazer de volta aqueles que amamos.


As viagens no tempo aparecem como uma possibilidade real de mudar o passado e evitar os traumas dos personagens. Mas, à medida que a história avança, percebemos que essas tentativas são inúteis. Em um dado momento, Jonas, cansado do sofrimento e das tentativas frustradas de salvar sua amada que acaba levando-o de volta ao ponto de partida, decide tirar a própria vida. Mas nem essa saída lhe é concedida. Ele descobre que não poderá matar-se porque seu eu do futuro já existe. Esse é só um dos exemplos de como o futuro influência o presente o passado.


Os sentimentos entrelaçam as vidas de todos em Dark, tornando-os seus escravos. Como o fio vermelho de Ariadne que envolve suas vidas em nós muito intrincados. Ariadne é uma importante peça na série. Há muitas referências ao mito ao longo das três temporadas.


Ariadne era filha de Minos, rei de Creta. Ele era pai do famoso Minotauro, criatura meio homem meio touro. Minos aprisionou o Minotauro no centro de um imenso e mortal labirinto. Teseu, o herói de Atenas, deveria matar a criatura. Em um sonho, ele recebe a mensagem de que seria salvo pelo amor. De fato, Ariadne, a responsável pelo labirinto, apaixona-se por ele e entrega um novelo que ele deve ir desenrolando à medida que adentra o labirinto. Ela segura a ponta e, dessa forma, após chegar ao centro e matar o Minotauro, ele consegue voltar para o início seguindo o fio.


O amor mostrou a Teseu a saída de seu labirinto. O labirinto, com sua forma circular, é um símbolo do processo de individuação, que, segundo o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, é uma reflexão em si mesmo para tornar-nos quem realmente somos. Teseu precisou adentrar esse lugar interior desconhecido e perigoso e encontrar o monstro que o habitava. Esse monstro era ele próprio.


Da mesma maneira, Jonas descobre que o monstruoso Adam é seu eu do futuro. Em choque, diz que não consegue entender como poderá querer o que Adam quer. Somente após anos de dor e sofrimentos pelas tentativas frustradas de mudar o passado é que Jonas decide acabar com tudo: passado, presente e futuro. Jonas (Teseu) é forçado a entrar no labirinto de suas emoções e desejos mais inconscientes e enfrentar seu Minotauro (Adam).


O nó que une todos os personagens advém do amor impossível e desejo profundo entre Jonas e Martha. É deles que nasce uma linhagem torta e condenada à repetição eterna do eterno sofrimento. É também o amor e o desejo que movem Adam e Eva em seus diferentes mundos. O desejo de Adam de acabar com o sofrimento eterno daquele purgatório. O amor de Eva pelo filho gerado daquele amor impossível.


Assim, Adão e Eva combatem um ao outro usando os outros personagens como seus peões. Adam quer deseja com o mundo. Eva deseja que ele continue existindo da mesma forma infinitamente. Os dois são escravos de seus desejos e escravizam todos os demais.


É Claudia Tiedemann que desejará algo diferente. Mas ela também será movida pela dor da perda da filha, Regina, e o desejo de que ela também possa viver sem sofrimento. É Claudia quem descobre que os dois mundos que eles conheciam, o mundo de Adam e o de Eva, não eram as únicas realidades possíveis. Existia um terceiro mundo, aquele que deu origem aos demais.


Jung cunhou o termo “função transcendente” para designar a função psicológica que cria uma síntese entre conteúdos conscientes e inconscientes em tensão. Cada lado se contrapõe ao outro e gera uma tensão psíquica imensa. A função transcendente é capaz de criar uma terceira via possível, unindo esses dois pólos em algo novo que surge dessa junção: um símbolo.


Claudia desempenha o papel de função transcendente trazendo ao conhecimento desses dois pólos antagônicos (Adam e Eva) que existe um terceiro mundo onde toda a dor foi criada e é ali onde ela pode ser finalizada.


No mundo original, H. G. Tannhaus (Christian Steyer) cria a máquina do tempo para aplacar a dor da perda de sua família e tentar mudar o passado. Ao fazer isso, rompe sua realidade em duas, levando à criação dos mundos paralelos de Adam e Eva e a todo sofrimento neles vivenciado. Tannhaus, por não aceitar a perda, cria outras realidades de perda e sofrimento eternos.


Ao fim, todos Adam, Eva e Tannhaus estão emaranhados em seus sentimentos de amor e perda e o desejo de que o sofrimento acabe. São eles que tecem os nós que entrelaçam todos os demais. Ao adentrar seus labirintos interiores, Jonas e Martha precisarão entender que seu desejo imenso de ficarem juntos é o que mantém aquela imensa teia. E precisarão, finamente, abdicar do que desejam para que possam terminar com os ciclos de sofrimento. Aceitando a perda, deixando o tempo fruir e destruir o que amavam. Porque esse é o movimento inexorável do tempo.


Ao final, Jonas e Martha abdicam de seus desejos e, em um ato de altruísmo agridoce, despedem-se um do outro. Todos que estavam presos na teia de desejos dos dois são também libertos.


Mas sabemos que suas histórias não foram apagadas. Como Dark mostra, presente, passado e futuro coexistem em nosso inconsciente. Apenas nossa consciência desperta não é capaz de enxergá-los.


“Um destino ligado ao próximo. O fio, vermelho como o sangue, junta todas nossas ações. Ninguém consegue quebrar os nós. Mas eles podem ser cortados. Ele cortou nossos, com uma lâmina afiada. Porém algo ficou para trás que não pode ser cortado. Uma ligação invisível."

Richard Strauss


E assim, eles cortaram os nós. Mas sua ligação jamais será quebrada.


Quer mais? Assista nossa live sobre a série em https://www.instagram.com/tv/CEkbxnCpM6R/?utm_source=ig_web_copy_link



Carolina Luz de Souza é psicóloga junguiana, mestre em Psicologia Clínica e Especialista em Terapias corporais e artísticas. Trabalha com o desenvolvimento feminino e acompanhamento emocional do pré-natal e puerpério. Realiza atendimento a adultos, adolescentes e crianças na cidade de Campinas e online para todo o Brasil.


Facebook: /carolluzpsi

Instagram: @carolluz_psi

Site: www.lumiarpsicologia.com.br


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