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Repetição e saúde mental em Russian Doll

por Leonardo Veiga Guarnieri, CRP 07/27235


Não é incomum, quando precisamos tomar alguma decisão importante, tentarmos analisar a situação calmamente, considerar os prós e contras, avaliar as consequências de nossas escolhas… Enfim, agir racionalmente. Para isso, questionamos nossas decisões anteriores, pensamos o que nos levou a tomar esse ou aquele caminho, principalmente quando as coisas não dão tão certo. Acreditamos que há um autoconhecimento que pode nos levar a aprender com o que consideramos erros para que, no futuro, possamos fazer tudo de maneira diferente.


E, às vezes, nada disso adianta e fazemos a mesma coisa de novo, de novo e de novo…


Russian Doll também é sobre isso. A série da Netflix conta a história de Nadia, uma desenvolvedora de software que se acha em um impasse curioso: na noite do seu aniversário de 36 anos, ela sofre um acidente e morre. Mas esse é só o começo da história. Logo em seguida, ela se vê de novo em sua festa, mais cedo. Sem entender o que se passa, ela prossegue sua noite e, novamente, acaba morrendo. A coisa toda se repete diversas vezes, inicialmente para sua surpresa e, depois, seu desespero. Aos poucos, fica claro que ela está presa em uma sequência temporal que é reiniciada toda vez que ela morre – o que acontece de diversos jeitos, que vão do cômico ao trágico, dois elementos com os quais a narrativa joga muito bem.


Nadia acredita que é a única presa nesse loop temporal, já que ninguém mais ao seu redor se lembra de nada após os resets e nenhum de seus amigos entende seu espanto e confusão. Convencida a encontrar uma explicação para o estranho fenômeno, ela começa a investigar, tentando contornar os perigos mortais que, de repente, parecem estar em todo lugar. Conforme ela avança em sua jornada (ao custo de várias mortes), Nadia vai formulando e descartando diversas hipóteses. Inicialmente, acredita estar sob algum efeito colateral da mistura de drogas que havia fumado. Sua segunda explicação é que, finalmente, teria enlouquecido. Em um terceiro momento, chega a acreditar que o prédio de sua amiga, onde ocorria a festa de aniversário e que era a sede de uma antiga escola judaica que havia sido fechada, era assombrado, indo até o templo interrogar o rabino sobre a história da construção.


A trama da série tem como recurso narrativo esse mistério, ainda que ela nunca apresente uma explicação bem amarrada para ele. Não se trata disso, no fundo, mas sim das situações absurdas nas quais Nadia se coloca, bem como dos personagens secundários que dão um pano de fundo ao seu desenvolvimento como personagem, além de oferecer um contraste ao seu sarcasmo, humor ácido e descrença geral na humanidade. Em um certo ponto da narrativa, conhecemos o outro personagem principal, que age como o relutante escudeiro de Nadia na segunda metade da série. Ela o encontra após o elevador no qual estava sofrer um defeito e despencar, para o desespero dos ocupantes – exceto o dela e de um estranho ao seu lado, que permanece calmo enquanto eles caem para suas mortes. Quando ela lhe pergunta se ele não percebia que iam todos morrer, o homem apenas responde que não tinha importância, pois morria o tempo inteiro.


Quando ambos percebem que estão presos na mesma situação, constantemente morrendo e voltando sempre à mesma noite, eles decidem procurar uma solução juntos. É claro que, de início, não é nada fácil. Os dois têm muitas divergências e discordâncias, apesar de lidarem com dificuldades similares. Nadia admite diversas vezes ao longo da série ter problemas em confiar nas pessoas a sua volta ou em demonstrar fragilidade em seus relacionamentos, além de ser chamada de fria e egoísta por quase todas pessoas em sua vida. Alan, por outro lado, é controlador e distante. Não percebe, por exemplo, a infelicidade de sua namorada, recebendo como um choque a notícia de que ela estava o deixando após nove anos juntos. E isso bem na noite em que ele iria pedi-la em casamento – momento que ele precisa reviver toda vez que encontra seu fim.


Uma tecla na qual a série bate bastante é nas dificuldades sociais dos dois, sejam românticas, familiares ou mesmo com seus próprios amigos. Como boa parte do elenco de personagens da série, Nadia e Alan são apresentados como “desajustados”, não conseguindo se encaixar em nenhum lugar, seja no trabalho, seja em seus próprios círculos sociais. Não só isso, mas eles também não conseguem fazer muito em relação a isso. É a situação trágica na qual os dois se encontram que funciona como um certo motor, por uma dupla via, avançando a história em torno do mistério, mas também permitindo que eles formem vínculo entre si, que provavelmente nunca ocorreria de outra forma, e finalmente quebrem o ciclo no qual se encontram. Nos episódios finais, principalmente, a série parece tentar passar, não sutilmente, a mensagem de que é, às vezes, é impossível enfrentar a tudo sozinho, e que não há nada de errado em procurar ajuda.


É só assim que Nadia e Alan conseguem retomar sua vida, saindo das repetições infinitas. Suas dificuldades com questões de saúde mental também são mencionadas desde o começo. Esse é um dos temas centrais da história, figurado na repetição. Ainda que queiram mudar (a si mesmo, aos outros, a tudo) e encontrar novos resultados, eles acabam sempre no mesmo lugar. Tanto Alan quanto Nadia têm um histórico com problemas de saúde mental. Ele usa fitas de autoajuda com mensagens de empoderamento, que escuta constantemente, e admite ter medo de procurar ajuda profissional para sua ansiedade, fato que sua namorada também aponta como motivo para o término. Ela, por sua vez, tem um histórico familiar que a assombra. No segundo episódio, quando Nadia começa a crer que o loop temporal seria fruto de algum delírio, conhecemos um pouco mais dessa história. Lenora, sua mãe, lidava com traços obsessivos graves que causavam uma série de dificuldades às duas, chegando a colocar Nadia em perigo. Por causa dessas dificuldades, Lenora acabou perdendo a custódia da filha, que foi criada por Ruth, uma amiga da família e terapeuta. A protagonista dá a entender que sua mãe teria morrido logo após isso tudo acontecer, e diz carregar uma grande culpa por acreditar tê-la abandonado. Nesse mesmo episódio, Nadia chega a pedir a Ruth que a interne, embora a coisa toda tenha resultados desastrosos: no caminho para o hospital, ao ser tratada de maneira desrespeita pelos técnicos, que não a escutam, ela acaba desistindo e, ao reagir às tentativas deles de contê-la, causa um acidente com a ambulância, morrendo mais uma vez.


Eventualmente, Nadia e Alan encontram as respostas que procuram e, embora Russian Doll tenha o molde de uma história tradicional de “crescimento pessoal”, com a solução residindo em os personagens alcançarem uma espécie de autoconhecimento transformativo, também há outros matizes. Por um lado, os dois só conseguem achar uma saída para a série de mortes repetitivas quando, começando a cultivar uma relação mais estreita e agindo de forma altruística, eles compreendem algo sobre si e podem, então, repensar suas decisões. Nadia, sendo uma desenvolvedora de software, chega a falar que a coisa toda se trata de um “bug” e que só precisam reescrever o código e tudo voltará ao normal.


Por outro lado, porém, há um certo ponto de desespero que a performance de Natasha Lyonne capta muito bem na interpretação da protagonista. Algumas vezes ela parece tão perto de chegar a algum lugar em sua busca quando um acidente absurdo acaba reiniciando tudo. Nessas passagens, a mera expressão dela ao se ver de volta ao banheiro da festa, no momento em que tudo começa, é suficiente para pensarmos que há um limite da frustração com o qual ela consegue lidar, para além do qual a coisa começa a ser enlouquecedora.


Podemos, sim, medir as consequências de nossas ações e aprendermos com as decisões que tomamos, mas a ideia de que, se mantivermos uma certa atitude positiva e abertura para o aprendizado, será possível simplesmente nos “reprogramarmos” é bastante nociva e perigosa. Ela vende uma solução fácil para problemas muitas vezes complicados. Quando falamos de nossos padrões de relacionamentos, visões de mundo, nossos hábitos e atitudes, não há uma fórmula única ou mesmo garantida. Apesar do tom pessimista da protagonista, Russian Doll mostra que isso não precisa terminar em uma desesperança ou uma resignação a nossos problemas – pelo contrário, que é quando aceitamos a ausência dessa resposta mágica que podemos encontrar um certo espaço de respiro.


O momento final da série captura isso bem. Em uma conversa emocionada, Alan pergunta para Nadia se ela pode prometer que ele será feliz, ao que ela responde diretamente que não, não pode prometer isso, mas que garante que ele não estará sozinho. A isso, Alan apenas responde “Ok. E agora?” Outra cena se segue, mas a coisa toda poderia muito bem ter ficado por aí.


Leonardo Veiga Guarnieri é historiador e psicólogo, CRP 07/27235. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisa o tema da escrita e suas relações com a clínica. Atua na clínica particular, a partir do referencial psicanalítico, em Porto Alegre/RS. Contato: leonardovguarnieri@gmail.com

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